REFLEXÃO SOBRE ARBITRAGEM.


Pedro Maurício Pita Machado

Advogado em Porto Alegre.

Vice-Presidente do Sindicato dos Advogados do RS.

e-mail: rs000470@pro.via-rs.com.br


1. Editada a Lei 9.307, em 23.09.96, mediação e arbitragem passaram à ordem do dia. A massiva propaganda e o forte lobby para sua adoção no Direito do Trabalho exigem um claro posicionamento dos advogados trabalhistas gaúchos e de nossa entidade representativa.


Sem me ater às questões constitucionais emergentes da Lei de Arbitragem e às condições de sua aplicabilidade, penso que a definição de uma postura coletiva quanto ao tema exige primeiro uma reflexão sobre a natureza do instituto e a situação histórica em que se lhe procura impor, para depois acercar-se das justificativas apresentadas por seus defensores.


2. Diz o art. 1o da Lei da Arbitragem que "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". Fundamenta-se na liberdade contratual e pressupõe a igualdade das partes. É, assim, incompatível com o Direito do Trabalho, por essência tuitivo, face ao reconhecimento da inferioridade real dos trabalhadores ante os capitalistas. O sentido deste ramo do Direito é o aprimoramento das condições de vida do trabalhador. É proibido retroceder. Daí os princípios de irrenunciabilidade, de irredutibilidade salarial, de nulidade das alterações contratuais que prejudiquem os obreiros, etc., por sua vez incomunicáveis com o objeto da arbitragem privada, os "direitos patrimoniais disponíveis".


3. Após a 2a Guerra Mundial, pela competição socialista e a pressão dos movimentos sociais, o capitalismo mundial passou a empreender um conjunto de políticas que o afastaram do clássico modelo liberal. O Estado de Bem Estar Social caracterizou-se, em maior ou menor grau pela independência econômica nacional, a promoção do bem estar social, a busca do pleno emprego e a mediação estatal dos conflitos sócio-econômicos.


O neoliberalismo surge nos anos 80, com a queda do muro de Berlim, a terceira revolução tecnológica e a supremacia do capital financeiro (não produtivo), orientando-se para o desmonte das estruturas que asseguravam ou visavam assegurar essas políticas. Historicamente situada, portanto, a solução privada dos conflitos laborais e o conseqüente afastamento da tutela estatal também se mostra mais afeto aos postulados neoliberais, que rejeitamos, do que à promoção social que aspiramos.


4. Defensores da mediação e arbitragem partem da constatação da "crise" do Judiciário, que não tem resolvido satisfatória e tempestivamente os litígios coletivos e individuais de trabalho. Aliam justificavas econômicas (flexibilidade para auxiliar a competitividade nacional na globalização) e ideológicas ("maturidade" dos trabalhadores para contratar em pé de igualdade com o empresariado).


Embora haja consenso quanto à crise da Justiça do Trabalho, divergem as soluções apontadas para superá-la. Umas afinam-se com o postulado neoliberal de "estado mínimo" e supremacia do mercado, outras defendem as conquistas sociais e os mecanismos de sua regulação: "a retirada do Estado na solução dos conflitos é ínsita ao fundamentalismo de mercado, ou seja, destrói-se todo o arcabouço jurídico e o sistema de solução de conflitos para que novas regras sejam construídas a partir dos interesses ditados pelo grande capital (...) Melhor explicitando, a arbitragem privada está inserida na proposta de substituição do Estado pelo Mercado". 1


O desafio inerente à afirmação da "maturidade" dos trabalhadores para negociar e contratar não esconde a armadilha ideológica antiga, refutada há muito tempo e sintetizada de modo insuperável por LACORDAIRE: "entre o forte o fraco, a lei liberta e a liberdade escraviza". O genial apotegma do jurista revolucionário burguês sobrevive aos tempos e espraia sua influência pelos diversos ramos do direito, especialmente o do consumidor. Retornar à presunção formal de igualdade nas relações de trabalho seria retroceder mais de um século.


A motivação econômica sobretudo demonstra de modo irreversível a quem de fato beneficia a composição privada dos conflitos trabalhistas. A pregação neoliberal de flexibilização, desregulamentação e deslegalização visa ajustar o mundo do trabalho à nova ordem. PASTORE, sempre revelador, não se vexa em expor a catastrófica contrapartida dessa "mudança estrutural": "As inovações tecnológicas e as mudanças administrativas têm permitido produzir muito. Mas tudo isso vem sendo feito com menos mão-de-obra. Ou seja os novos métodos de produção usam pouco trabalho, geram desemprego, subemprego, jornadas em tempo parcial, trabalho temporário e outras formas atípicas. (...) Quase todos os países vêm simplificando a legislação trabalhista e previdenciária, reduzindo os encargos sociais" 2


Repete-se o quadro denunciado por TARSO GENRO quando de recentes tentativas de impor modelos alienígenas de contrato coletivo: "(...) esta 'retirada' do Estado significa levar par o plano do Direito Coletivo do Trabalho a aspiração mais cara do neoliberalismo, que se expressa no debilitamento das funções universalizantes do Estado para destruir os fundamentos do Direito do Trabalho e submeter as relações de trabalho, sem qualquer mediação, às mesmas leis do movimento da mercadoria".3


É preciso afirmar, como fez o III Congresso de Direito Alternativo do Trabalho, em Florianópolis, que "o neoliberalismo, cujo ideário fragmenta, flexibiliza, desregulamenta e precariza o mundo do trabalho, não é a única forma de inserção dos Estados-nação no mundo globalizado".4


5. Para contribuir na busca de soluções, lembro que a crise da Justiça do Trabalho decorre, de um lado, do massivo descumprimento das leis trabalhistas, e, de outro, da procrastinação oceânica obviada por certa linha de atuação processual, que encontra ressonância numa legislação frouxa e corre perante uma Justiça fisicamente acanhada, em termos de Juízes, funcionários, instalações e equipamentos, e sujeita como todas as instituições à influência das forças sociais predominantes.


A saída para que se tenham mais rápidas e melhores composições de conflitos laborais, em nosso sentir, não é a retirada da Justiça, mas seu aparelhamento, aliado à uma efetiva repressão (na fase fiscalizatória e também na fase judicial) ao ilícito trabalhista (multas progressivas, impedimentos a contratar com a Administração, acréscimos moratórios, sanções processuais), aliada a uma política jurisdicional que efetivamente repudie a ambos: lesão a direito e procrastinação. Também se faz necessária uma maior democratização na composição dos Tribunais, seja mediante a eleição de seus integrantes ou o caráter temporário do mandato.


Não basta também apenas refutar a política antinacional do atual governo, que submete o país incondicionalmente aos ditames do "mercado global", provoca a quebra de empresas produtivas, promovendo o desemprego e a violência na cidade e no campo. É preciso unificar esforços na busca de uma projeto de desenvolvimento nacional com justiça social, de que faz parte, sem dúvida, a defesa do Direito do Trabalho.


Porto Alegre/Bento Gonçalves, agosto de 1997.


1 ANA LUIZA HEINECK KRUSE, ROSANE SERAFINI CASA NOVA e CARLOS ALBERTO MAY, in A Propósito da Justiça Privada, Tese ao ... Encontro da AMATRA IV, Passo Fundo, Março de 1997.

2 JOSÉ PASTORE, Relações do Trabalho numa Economia que se Abre, in Revista LTr.-59-01/19.

3 TARSO GENRO, op. cit., loc. cit.

4 III CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO ALTERNATIVO DO TRABALHO, Florianópolis, SC, junho de 1997.