ARBITRAGEM PRIVADA - O DIREITO DO MAIS FORTE ESCOLHER SEU JUIZ

Antonia Mara Vieira Loguércio e Luiz Alberto de Vargas


Assistimos, há poucos dias, no plenário da CPI dos Títulos Públicos, denúncia do Sen. Roberto Requião da existência de um contrato entre um dos Bancos sob investigação e uma empresa de "lobby" parlamentar, onde havia uma cláusula de sucesso, pela qual a empresa "lobbista" se comprometia a obter a desmoralização ou, no mínimo, a paralisação da CPI, através de seus contatos com parlamentares e com jornalistas de renome.

Ao largo da indignação que o caso desperta, é de se questionar se os signatários de tão iníqua cláusula alguma vez cogitaram de invocá-la perante os tribunais.

Certamente não! Onde, então, ela poderia ser validamente argüida ?

A resposta é óbvia: os "direitos emergentes" de tal cláusula somente seriam abrigados num espaço em que não se cogitasse se a mesma violava ou não a ordem jurídica ou contrariava o interesse público, mas que existisse tão somente como um prolongamento da vontade das partes.

Eis uma situação privilegiada para a arbitragem privada, pelas suas "conveniências" de sigilo, dasapego às normas legais, informalidade e despreocupação com o interesse público.

Aliás, nos termos da recentemente aprovada Lei nº 9.307/96, após um sumário julgamento pelo árbitro privado - onde a análise sobre a origem do alegado débito refoge à competência e ao interesse do julgador -, o credor poderá executar judicialmente o devedor, sem necessidade de homologação do laudo arbitral e sem os riscos de recursos contra a decisão.

O singelo exemplo mostra claramente as diferenças entre o proceso judicial e os mecanismos de auto-composição, bem como evidencia os riscos da criação de um "espaço livre" da soberania estatal, criado pelo simples exercício da vontade das partes. Assim, através do engenhoso mecanismo da arbitragem privada, equiparando árbitros escolhidos pelas próprias partes a "juízes de fato e de direito" (art. 18), de banqueiros de jogo de bicho até lavadores de dinheiro sujo provindo de corrupção ou do tráfico de tóxicos, todos poderão requisitar o uso da estrutura judiciária para executar seus créditos, sem os riscos da "nociva interferência estatal" em seus negócios privados ou de quebra do "sagrado sigilo de seus atividades empresariais".

A fonte da legimitidade de tais árbitros - e a fonte de sua remuneração - é a autonomia de vontade das partes, e não o Estado. Ao partilhar a jurisdição, a lei nº 9.307/96, implicitamente, admite que interesses privados possam se sobrepor ao interesse público, criando esferas da vida privada inacessíveis ao controle social, com evidentes riscos à democracia.

Os árbitros não estão obrigados a aplicar a lei, já que faculta-se o julgamento por eqüidade. A quebra do império da lei constitui fator de inegável insegurança jurídica, além dos já mencionados riscos à soberania popular e à ordem pública.

O art. 18 da referida lei, ao deixar de exigir que o laudo arbitral seja homologado pelo Poder Judiciário para obter efeito de coisa julgada, bem como ao excluir a possibilidade de recurso contra ele, é inconstitucional, por violar o art. 5º, incisos XXXV e LIII da Carta Magna.

Nenhuma lesão de direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário e, assim, nenhuma cláusula contratual poderá vedar a parte que se sentir prejudicada de acionar o Judiciário em defesa de seu direito.

Além disso, decorrendo o árbitro privado da escolha contratual, traz ele, em si, as deficiências inerentes aos acordos de vontade entre partes desiguais, ou seja, a arbitragem privada reproduz, tanto na escolha do árbitro, quando no procedimento de decisão, tal desigualdade. Ao contrário da arena judicial, onde os contendores são equilibrados por mecanismos obrigatórios de nivelamento das partes economicamente desiguais (como a gratuidade, a defensoria pública, princípios processuais de inversão do ãnus da prova, produção de prova de ofício pelo Juiz, etc.), na arena privada as partes são declaradas, por definição, como materialmente iguais. O árbitro,provavelmente, será escolhido mais pela vontade do mais poderoso - que, provavelmente, proverá sua remuneração - e, destituído de estrutura material, obrigar-se-á a decidir com as provas que puderem ser apresentadas pelas partes, o que favorecerá aquele que disponha de melhores meios para produzi-las. Assim, a decisão arbitral, mormente se admitida amplamente e destituída de quaisquer garantias ao direito do mais fraco - como no caso da Lei nº 9.307/96 - reduzir-se-á a uma forma de legitimar a vontade do mais forte.


A arbitragem privada é incompatível com o Direito do Trabalho. Por dois motivos: o primeiro, constitucional, já que o art. 114 parágrafo 1º da Constituição Federal limita a arbitragem aos conflitos coletivos; o segundo, porque a arbitragem é incompatível com direitos indisponíveis, como reconhece o artigo 25 da própria lei nº 9.307/96. Ainda que se admita a transação de tais direitos, esta somente pode ocorrer na esfera judicial, jamais extrajudicialmente, ainda mais com pretensão a coisa julgada. .


Finalmente, do ponto de vista do cidadão, ressalta-se o potencial violação aos direitos e garantias constitucionais do cidadão, quais sejam, a garantia do devido processo legal, da revisão da decisão pelo duplo grau de jurisdição e o da gratuidade aos que não disp¨em de recursos (artigos 5º, incisos LIV, LV e LXXIV)..


Assim, conclui-se, .


- que a Lei nº9.307/96 é incompatível com o direito individual do trabalho;

- que o art. 18 da Lei nº 9.307/96 é inconstitucional, ao excluir o laudo arbitral da apreciação do Poder Judiciário e ao não prever sua homologação judicial para o efeito de coisa julgada;.


- que urge a imediata revisão da Lei nº9.307/96, já que sua implementação sem cautelas importará em grave ameaça à segurança jurídica, ao equilíbrio das relaç¨es sociais, à democracia e aos direitos do cidadão..


Passo Fundo, 3 de abril de 1997..