EMENTA: ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. 

Adota-se o entendimento de que a responsabilidade da empregadora é objetiva, especialmente nos casos em que a atividade atrai risco acentuado, maior do que o comum ao trabalhador. No caso, o trabalho no transporte coletivo urbano não é de risco acentuado, como regra. Todavia, o reclamante, como cobrador, sofreu inúmeros assaltos, alguns a mão armada, situações que, ocorrendo de forma reiterada, acabaram por lhe gerar síndrome de estresse pós traumático.  Comprovado o nexo causal entre a moléstia e a atividade exercida em prol da reclamada, impõe-se o dever de indenizar. Incidência do art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Recurso do reclamante  provido para condenar a reclamada em danos morais. 

 

VISTOS e relatados estes autos de RECURSO ORDINÁRIO interposto de sentença proferida pelo MM. Juízo da Vara do Trabalho de Viamão, sendo recorrente XXXX e recorrida  EMPRESA DE TRANSPORTE COLETIVO VIAMÃO LTDA.

 

Inconformado com a sentença proferida pela Juíza do Trabalho Sônia Maria Fraga da Silva, às fls. 897/909, recorre o reclamante. Busca o reconhecimento da doença ocupacional e a condenação da reclamada em danos morais e materiais (fls. 912/918).

Contrarrazões da reclamada nas fls. 923/935.

Distribuídos, vêm os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

 

ISTO POSTO:

CONHECIMENTO.

            Tempestivo o apelo (fls. 896 e 911), regular a representação (fl. 27), custas processuais são atribuídas à reclamada (fl. 909) e depósito recursal inexigível, encontram-se preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso.

 

MÉRITO.

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS.   

            O julgador de origem entende que a moléstia adquirida pelo reclamante, transtorno de estresse pós-traumático em razão de inúmeros assaltos sofridos como cobrador de ônibus, não implica em responsabilização civil da reclamada, indeferindo as indenizações por danos morais e materiais. Refere não ter a reclamada agido com culpa ou dolo para o surgimento da moléstia. Afasta a responsabilidade objetiva da empregadora por entender que a atividade de transporte de passageiros não implica em riscos especiais. Aduz que o fato de os coletivos estarem sujeitos a assaltos não pode ser considerado para conformação desta atividade como de risco. Refere ser a reclamada também vítima da insegurança e da falta de medidas públicas para conter a violência.

            O reclamante não se conforma, asseverando aplicável ao caso a responsabilidade objetiva da empregadora, pois a atividade por ela desenvolvida envolve riscos de toda ordem. Relata que, como cobrador de ônibus, sofreu mais de vinte e cinco assaltos, alguns à mão armada, e, por vezes, teve roubados os seus pertences. Sustenta que o contrato existente entre o passageiro e a empresa transportadora, e o ora recorrente e a empregadora, é o mesmo, incidindo, ao caso, a responsabilidade objetiva, pela aplicação subsidiária da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Alega ser obrigação da reclamada proteger o seu empregado, e que a tese de que os assaltos são imprevisíveis está superada há muitos anos. Repisa que o cobrador se torna um consumidor, tal qual o passageiro, porque ambos objetivam chegar ao destino incólumes, sendo a empresa responsável, independentemente de culpa, pela reparação dos danos causados por defeitos relativos à prestação de serviços, a teor do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Afirma estar provado danos materiais e psíquicos em razão dos inúmeros assaltos de que foi vítima, sem que a empresa jamais o tenha reparado. Aponta o laudo pericial conclusivo quanto a danos psicológicos à razão de 30%, e que tais lesões impedem o seu retorno à função. Alega não ter a empregadora lhe propiciado exercer outra atividade para que pudesse retornar ao trabalho. Argumenta ter a Previdência Social caracterizado como doença profissional a moléstia que o acomete. Pretende a condenação da reclamada em danos morais à razão de trezentos salários mínimos regionais (item 23, fl. 25) e danos materiais consubstanciados em pensão mensal equivalente a 50% do piso da categoria com os mesmos reajustes concedidos à categoria (item 25, fl. 25).

À análise.

A comprovação do dano e a existência de nexo causal entre este e a atividade desempenhada pelo trabalhador são requisitos essenciais para que surja o dever de indenizar danos morais e patrimoniais em decorrência de acidente de trabalho ou doença ocupacional.

            O reclamante trabalhou para a reclamada de 01.04.98 a 08.06.2010, como cobrador de ônibus. Possui 36 anos (15.01.75). Está  reabilitado mediante curso técnico de enfermagem no SENAC, conforme consta do documento da fl. 865. Na audiência do  dia 08.06.2010, reconhecendo a reclamada não possuir nos seus quadros cargo que o reclamante possa ocupar, as partes conciliam parcialmente o feito com relação ao pedido 27, rescisão indireta do contrato de trabalho, abrangendo o valor pago eventual período de garantia de emprego e FGTS do período por ventura reconhecido como de gozo de benefício previdenciário acidentário. 

            Na inicial, relata que, como cobrador, sofreu 32 assaltos a mão armada nos veículos da reclamada, e em decorrência, experimentou sentimentos como tristeza, temor, depressão, baixa auto estima, e diversas outras aflições de ordem psíquica, pretendendo reparação.

            Em defesa, a reclamada assevera não poder responder por problema social que assola o país, mas que sempre se preocupou em auxiliar seus empregados, inclusive com assistência médica e psicológica. Afirma ter equipado cada veículo com cofre, orientando os cobradores para que depositassem os valores auferidos, permanecendo apenas com o suficiente para o troco, de forma a desestimular os assaltos.

            O laudo médico psiquiátrico conclui possuir o reclamante estado de  estresse pós traumático, e que o transtorno se iniciou após a sequência de assaltos sofridos. Afirma estar o reclamante apto para o trabalho desde que em nova atividade, que não envolva contato direto com o público em locais abertos (fl. 791, verso).

Esta Turma adota o entendimento de que a responsabilidade da empregadora é objetiva, especialmente nos casos em que a atividade atrai risco acentuado, maior do que o comum ao trabalhador, que não pode ficar desamparado. Com efeito, a doutrina tem caminhado nesse sentido. Leciona Sebastião Geraldo de Oliveira (in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, LTr, 2008, fl. 119), verbis: 

A indenização baseada no rigor da culpa está cedendo espaço para o objetivo maior de reparar os danos, buscando amparar as vítimas dos infortúnios, mesmo sem a presença da culpa comprovada, em harmonia com o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização, conforme exposto no art. 3º da Constituição da República. Desse modo, o instrumental jurídico está deslocando seu foco de atenção dos danos causados para os danos sofridos. 

     E nesse mesmo sentido, julgado do C. TST, de relatoria do Exmo. Ministro Mauricio Godinho Delgado, verbis

 

RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA (ART. 927, PARÁGRAFO ÚNICO, CC). INEXISTÊNCIA DE -CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA- (FATO DA VÍTIMA). A regra geral do ordenamento jurídico, no tocante à responsabilidade civil do autor do dano, mantém-se com a noção da responsabilidade subjetiva (arts. 186 e 927, caput, CC). Contudo, tratando-se de atividade empresarial, ou de dinâmica laborativa (independentemente da atividade da empresa), fixadoras de risco acentuado para os trabalhadores envolvidos, desponta a exceção ressaltada pelo parágrafo único do art. 927 do CC, tornando objetiva a responsabilidade empresarial por danos acidentários (responsabilidade em face do risco). Noutro norte, a caracterização da culpa exclusiva da vítima é fator de exclusão do elemento do nexo causal para efeito de inexistência de reparação civil no âmbito laboral quando o infortúnio ocorre por causa única decorrente da conduta do trabalhador, sem qualquer ligação com o descumprimento das normas legais, contratuais, convencionais, regulamentares, técnicas ou do dever geral de cautela por parte do empregador. Se, com base nos fatos relatados pelo Regional, se conclui que a conduta da vítima do acidente não se revelou como causa única do infortúnio, afasta-se a hipótese excludente da responsabilização da empregadora pelo dano causado. Recurso conhecido e provido.- (RR-850/2004-021-12-40.0, 6ª Turma, Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, DJ-12/06/2009) 

No caso, o reclamante estava a serviço da empresa, realizando atividades pertinentes ao contrato de trabalho. Não sofreria tantos assaltos se não estivesse no local a trabalho, cumprindo ordens da reclamada. Apesar de a empregadora não possuir meios de proteger seus empregados da violência urbana e de disponibilizar atendimento psicológico aos empregador, não prova tenha trocado o reclamante de linha ou de turno buscando amenizar o seu sofrimento.

Ademais, o fato de a previdência social ter encaminhado o reclamante à reabilitação profissional, reconhecendo que ele  está incapacitado para a função anteriormente exercida, reforça o entendimento de que há nexo causal entre o transtorno de estresse pós traumático e o trabalho como cobrador de ônibus.

Assim, presente nexo de causalidade entre a moléstia e o trabalho prestado em prol da reclamada, impõe-se o dever de indenizar, a teor do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

Não resta provada incapacidade ou redução de capacidade de trabalho do reclamante. A indenização por danos materiais é cabível apenas nos casos em que resta provado prejuízo financeiro efetivo sofrido pela vítima, o que não ocorreu.

Resta apreciar danos morais.

Inúmeros são os valores inerentes à personalidade do homem, imateriais, que merecem reparação quando afetados. A tutela dos interesses morais está definitivamente consagrada no ordenamento jurídico pátrio, através do art. 5º, incisos V e X, da Constituição, editada em 1988: "V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."       

As referidas normas constitucionais efetivamente consagram "o direito à reparação de ofensa a interesses morais, sem qualquer exigência à eventual necessidade de repercussão econômica para a respectiva indenizabilidade, contentando-se, pois, com o simples fato da violação" (in Instituições Civis no Direito do Trabalho, Alexandre A. Belmonte, 2ª edição, Ed. Renovar). De outra parte, a conceituação do dano moral é matéria examinada com profundidade na doutrina civil. Diversos são os conceitos, destacando-se, todavia, devido à sua consistência, aquele adotado por José de Aguiar Dias, segundo o qual o dano moral consiste "na penosa sensação da ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em conseqüência deste, seja provocada pela recordação do defeito ou da lesão, quando não tenha deixado resíduo mais concreto, seja pela atitude de repugnância ou de reação ao ridículo tomada pelas pessoas que o defrontam." (citação feita por Beatriz Della Giustina, no artigo Dano Moral: Reparação e Competência Trabalhista, RevistaTrabalho & Doutrina, Ed. Saraiva, setembro/96, p. 5).          

O dano moral surte efeitos na órbita interna do ser humano,  causando-lhe uma dor, uma tristeza ou qualquer outro sentimento capaz de lhe afetar o lado psicológico, atingindo a esfera íntima e valorativa do lesado. Consiste na afronta ao código de ética de cada indivíduo, com repercussão na ordem social.          

Desta forma, quando o litígio versar sobre direito moral, o autor não precisa comprovar que se sentiu ofendido ou humilhado com a atitude do agressor. A presunção sana a impossibilidade da prova da lesão de direito personalíssimo sofrida pela pessoa natural de direito em razão de ato ou omissão ilícita de outrem. Nesse sentido, o ensinamento de Carlos Alberto Bittar, reproduzido no artigo da advogada Beatriz Della Giustina já referido: "esses reflexos são normais e perceptíveis a qualquer ser humano, justificando-se, dessa forma, a imediata reação da ordem jurídica contra os agentes, em consonância com a filosofia imperante em tema de reparação de danos, qual seja, a da facilitação da ação da vítima na busca da compensação” (ob. cit., p. 12). 

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência exigem a prova inequívoca do fato e do nexo causal entre a ação do ofensor e o dano causado ao ofendido, o que restou plenamente caracterizado no caso concreto.

Constata-se que o ora recorrente sentiu a dor emocional alegada, e que os fatos em análise enquadram-se nas hipóteses previstas nas normas dos arts. 186 e 927 do Código Civil, motivo da condenação da recorrida. 

            Quanto ao valor arbitrado à indenização, tem-se que a gravidade do ato e o abalo causado, em somatório às capacidades financeiras das partes, são os fatores a serem observados para a fixação do quantum indenizatório. A indenização fixada não pode, de forma alguma, gerar enriquecimento ilícito. Deve, contudo, atender à reparação da vítima e representar sanção de caráter pedagógico no ofensor.

Assim, fixa-se o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a título de danos morais, acolhendo-se o pedido de número 23 da inicial (fl. 25).

Dá-se provimento ao recurso ordinário do reclamante para condenar a reclamada em indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), valor atualizado nesta data e juros computados  a partir da data de ajuizamento da ação.

 

PREQUESTIONAMENTO.

Não se entende presente violação aos artigos eventualmente apontados, admitindo-se como prequestionados, mesmo quando não foram expressamente mencionados no acórdão, a teor da Súmula 297 do TST.

 

Ante o exposto,

ACORDAM os Magistrados integrantes da 3ª TURMA do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região: por maioria, vencida a Desa. Flávia Lorena Pacheco, dar provimento parcial ao recurso ordinário do reclamante para condenar a reclamada em indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Valor atualizado nesta data. Juros a contar da data do ajuizamento da ação. Valor da condenação que se majora em R$ 10.000,00 (dez mil reais). Custas acrescidas em R$ 200,00 (duzentos reais). Honorários periciais  médicos fixados na origem em R$ 1.000,00 passam a ser encargo da reclamada, a teor do art. 790-B, da CLT.

Intimem-se.

Porto Alegre, 30 de março de 2011 (quarta-feira).

 

 

 

 

 JOÃO GHISLENI FILHO

Relator

 

\cfm