SOBRE A POLÊMICA DA FLEXIBILIZAÇÃO LABORAL NO BRASIL DE HOJE


Em voga a utilização do termo "flexibilização" como expressão de inovação, moderação ou versatilidade contra conceitos ou fórmulas pretensamente inadequadas, arcaicas ou rígidas. No âmbito do Direito do Trabalho, os alvos de tais epítetos são facilmente identificáveis como sendo toda a legislação laboral protetiva, a jurisprudência e a doutrina embasadas nos princípios tutelares do Direito Laboral. Basear-se-iam em concepç¨es superadas, constituindo-se, hoje, em verdadeiros entraves ao livre desenvolvimento das relaç¨es de trabalho.

Em realidade, chegou-se quase a obter uma aparente "unanimidade" a respeito do tema, ou ao menos, criou-se a ilusão de que algum consenso existia, tal o volume de opini¨es coincidentes a respeito da matéria que, em poucos meses, inundaram os jornais e as revistas especializadas de Direito do Trabalho no Brasil, sempre a clamar pela desregulamentação das relaç¨es de trabalho.

A construção vertiginosa do que poderíamos chamar de "consensos instantâneos" não é absolutamente fato raro no Brasil de hoje. Através dos grandes meios de comunicação, se forjam ilus¨es de unanimidade, através da veiculação maciça de opini¨es coincidentes a respeito de um tema, ao mesmo tempo em que se eliminam ou se reduzem substancialmente da mídia as opini¨es discordantes. Tal manipulação cria uma sensação de consenso e, mesmo, uma situação de desconforto para os que divergem, pela sensação de isolamento ante uma maré de opini¨es uníssonas

. O exemplo mais eloqüente desse tipo de técnica foi, há pouco tempo, a aparente unanimidade nacional quanto à existência de pretensos "marajás" no serviço público, detectando nos salários dos funcionários públicos federais a raiz de grandes problemas nacionais. A opinião pública foi convencida que a remuneração mais elevada de alguns poucos funcionários impedia o crescimento nacional pela oneração excessiva dos cofres públicos

. Hoje, o resultado prático desse discurso todos sabemos: assumindo, como Presidente da República eleito justamente o candidato que fazia dessa temática o ponto forte de sua campanha, passou-se a desmontar, com voracidade, a máquina pública, em especial os serviços de controle, fiscalização e arrecadação, dando ensejo para que florescesse uma vastíssima e profunda rede de corrupção no serviço público federal, a envolver inclusive o sr. Presidente da República, hoje afastado de seu cargo e aguardando julgamento pelo Senado Federal por vários crimes, inclusive o de corrupção passiva. Ou seja, como no caso em questão, o "consenso instantâneo" encobre justamente uma motivação real que não vem a público justamente pela supressão do debate e do dissenso. Como já dizia Nélson Rodrigues: "toda a unanimidade é burra!", pois é sempre na possibilidade da divergência que se criam as condiç¨es do cidadão decidir democraticamente. Quando se sonega a possibilidade da informação divergente, se suprime o debate e empobrece a democracia. Caminha-se pela vereda perigosa que leva à demagogia ou, mesmo, ao fascismo.

A idéia da necessidade urgente de flexibilização das relaç¨es laborais brasileiras caminhava, até há bem pouco tempo, para a montagem de um "consenso" do tipo referido acima, pois vários autores, talvez ingenuamente, repetiam monotonamente o discurso da modernidade e da inserção do Brasil no mercado mundial como justificadoras da revogação de boa parte da legislação protetiva. Já há, inclusive, uma comissão de juristas formada pelo Governo Collor que estuda a reformulação completa da C.L.T., balizada pelos propósitos confessados de desregulamentação e de flexibilização. Felizmente, dois grandes juristas de renome, Arnaldo Süssekind e Orlando Teixeira da Costa, posicionaram-se contra a corrente que se formava avassaladora e, graças a eles principalmente, criam-se já condiç¨es mais propícias a um debate mais aprofundado sobre as inconveniências da flexibilização em nosso país.

O objetivo dessa intervenção é "aumentar a estática" que interfere no discurso da mídia, numa função quase contrapontística de incentivar o surgimento de novas idéias na busca do equilíbrio mais perfeito que somente se obtém pela efetiva contribuição de todos os interessados.


Conceito de flexibilização.

Quando se apresentam como bem-sucedidas as experiências flexibilizatórias realizadas na Europa e nos Estados Unidos - a par de se olvidarem as gritantes diferenças entre as realidades sócios-econômicas entre os países desenvolvidos e o Brasil - confundem-se, talvez um tanto intencionalmente, modificaç¨es adaptativas decorrentes de negociação coletiva (e, presumivelmente, por concess¨es recíprocas) com desregulamentação ou flexibilização.

Não há dúvidas de que as relaç¨es de trabalho modificam-se velozmente, especialmente em funç¨es de alteraç¨es no paradigma tecnológica da produção, exigindo que as normas jurídicas adaptem-se a essas novas realidades. Por certo, tais modificaç¨es, de conteúdo adaptativo - como por exemplo, a contratação por jornada reduzida ou o trabalho a domicílio -, fazem-se naturalmente, pelo simples evoluir das relaç¨es de trabalho, sendo de nenhum sentido quem quer que pretendesse que, independentemente do decurso do tempo ou das realidades locais ou regionais, o contrato de trabalho fosse o mesmo, tivesse as mesmas cláusulas, assegurasse idênticos deveres e direitos.

Nesse sentido, é de se observar que o Direito do Trabalho é dinâmico por sua própria natureza, sendo mais facilmente modificável em face de novas realidades do que outros ramos do Direito. No caso do Direito do Trabalho brasileiro, em especial da legislação trabalhista, considere-se sua orientação marcadamente contratualista, a assegurar ampla liberdade de contratar, ressalvado apenas um patamar mínimo de direitos ao empregado. Assim, as partes podem livremente pactuar a respeito de remuneração, desde que assegurado o mínimo legal; quanto a horário de trabalho, limitada a jornada máxima diária em oito horas; inexiste qualquer restrição a trabalho parcial; permite-se a compensação horária; há expressa previsão para o trabalho temporário, a domicílio, de equipe e por subempreitada. Há, portanto, amplíssima liberdade de contratar, desde que assegurados os direitos mínimos previstos em lei, mais propriamente, na Constituição Federal.

Aqui, precisamente, o alvo das propostas de flexibilização, deixando claro que não se trata de enaltecer as vantagens de se adaptarem as relaç¨es de trabalho às novas realidades, mas justamente de suprimir conquistas históricas dos trabalhadores contidas no texto constitucional. Pretende-se flexibilizar, ou seja, possibilitar a contratação abaixo das condiç¨es mínimas previstas em lei, e desregulamentar, ou seja, deixar ao "livre jogo do mercado" a fixação das condiç¨es de trabalho. A "rigidez" que se quer flexibilizar é justamente a garantia de um nível remuneratório mínimo para uma jornada diária e semanal máximas, bem como a garantia de inalterabilidade das condiç¨es contratuais em prejuízo do empregado, a indenização em caso de despedida imotivada, etc., tudo, é claro, em benefício da aproximação do Brasil dos padr¨es de "modernidade" dos países desenvolvidos da Europa e da América do Norte.

Assim, para que se entenda perfeitamente o que se está a discutir, imp¨e-se a "desglamourização" das propostas flexibilizatórias, pelo perfeito discernimento entre os conceitos de adaptação, flexibilização e desregulamentação.

As justificativas para a flexibilização

Apresentam-se várias justificativas para a flexibilização laboral. Citam-se, entre as principais, a conveniência de manter-se ou até reduzir o atual nível salarial a fim de tornar o Brasil mais atrativo para o capital estrangeiro, as dificuldades econômicas das empresas em manter empregos e salários, as inovaç¨es tecnológicas e o interesse subjetivo dos empregados em trabalhar menos, ainda que percebendo remuneração menor.

Fale-se, primeiramente, dessa última justificativa, a de que aos trabalhadores interessaria trabalhar menos, aumentando-se os períodos de ócio e lazer, ainda que percebendo salário inferior ao legal. Justificar-se-iam, assim, os acordos individuais para redução de jornada e salário, hoje vedados pela lei, em especial o art. 468 da C.L.T. Ora, em um país em que a grande maioria dos trabalhadores percebe até um salário mínimo (equivalente a, mais ou menos, 40 dólares), soa hilariante - se não fosse trágico - cogitar-se que estes tivessem interesse em GANHAR MENOS, para ter mais acesso ao LAZER. Quanto em uma jornada semanal de 44 horas, um empregado percebe valor bem inferior às necessidades fundamentais de existência (como alimentação e moradia), parece bastante improvável que o tempo de lazer faça parte de suas cogitaç¨es de reivindicação sindical.

Quanto a tornar o país ainda mais atrativo para o capital estrangeiro, tal argumento se insere no contexto da profunda estagflação que, já há uma década, infelicita a nação brasileira. Inviável que se compreenda a crise econômica brasileira desligada da crise mundial. Esta decorre, em última análise, da recessão generalizada que atinge países desenvolvidos e, por conseqüência, com maior intensidade os países não desenvolvidos. O encaminhamento de saídas para a crise levou o mundo industrializado à concretização de políticas que agravaram sobremaneira as tendências de atrofiamento da economia dos países dependentes, seja pelo incremento do protecionismo, pela restrição de créditos aos países dependentes, ou pelo aprofundamento dos desequilíbrios nas relaç¨es comerciais, seja pelas crescentes press¨es para o pagamento da dívida externa do Terceiro Mundo. Assistiu-se, ainda, à formação de blocos econômicos dos países desenvolvidos, claramente sob a inspiração de constituírem, atrás dessa "cortina de ouro", ilhas fechadas de produção e consumo, inacessíveis aos cidadãos do Terceiro Mundo. No caso de Portugal, as prováveis dificuldades de manterem-se os acordos de livre circulação e cidadania recíproca entre Brasil e Portugal em face das exigência da Comunidade Européia demonstra que, infelizmente, na exata medida que Portugal "tornar-se mais europeu", afasta-se do Brasil e da África.

Seria de se questionar a validade do sistema econômico que, hoje, se por um lado, falha em manter aos próprios cidadãos do Primeiro Mundo o mesmo padrão de bem-estar de poucos anos atrás, ainda mais quando, relativamente à grande maioria da população terrestre, esta encontra-se excluída dos frutos do desenvolvimento, sofrendo as inclemências do desemprego, da recessão e da miséria absoluta. De qualquer forma, qualquer que seja o juízo que se faça sobre a nova divisão internacional do trabalho, é certo que a queda de investimentos nos países periféricos decorre da lógica de maximixação dos lucros ínsita ao capitalismo e, nessa óptica, certamente tais investimentos tornar-se-ão rarefeitos independentemente dos "atrativos" que se ofereçam. Na medida que os indicadores sócio-econômicos no Brasil chegam a limites preocupantes, a ponto de sociólogos do porte de Hélio Jaguaribe falarem sobre os riscos de convulsão social, é de se perguntar se o tecido social brasileiro resistirá ao prosseguimento desses processos de "atratividade". Repetindo a observação bem-humorada do Juiz de Direito gaúcho Amilton Bueno de Carvalho, maior flexibilização no Brasil somente será possível pela revogação da Lei Áurea...

Quanto aos argumentos de que as empresas brasileiras não conseguiriam manter os mesmos níveis remuneratórios, agravando o desemprego, diga-se que tal afirmação não resiste a uma análise mais acurada da planilha de custos empresariais. Esta indicará certamente que a participação da mão-de-obra é bastante pequena se comparada aos encargos tributários e, em especial, aos financeiros. Ademais, se a crise existe e as empresas tem dificuldades em manter os padr¨es remuneratórios, não se pode pretender resolver a questão pela fórmula simplista de arrochar ainda mais os salários ou admitir a demissão em massa. Sabe-se que o custo social de cada desempregado ou subempregado é altíssimo, onerando os serviços sociais e a Previdência.

Todos os cidadãos, com seus impostos, sustentam a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento das empresas (estradas, usinas de energia elétrica, bancos de fomento, etc.). Em troca dos lucros que auferem, compete aos empresários gerarem os empregos e promoverem a distribuição de renda através dos salários. Na medida que os empresários voltam-se à sociedade e alegam não poderem mais manter os mesmos níveis de emprego e/ou salário, é no mínimo de senso comum que se cogite de rediscutir a questão sob a óptica de TODA A SOCIEDADE, ao invés de se reduzir a problemática a uma mera demanda sindical. A participação dos trabalhadores nos lucros (e não somente nos prejuízos), a gestão democrática aberta à comunidade, a discussão sobre a essencialidade ou não dos produtos, os direitos dos consumidores e o respeito às normas ambientais são temas de uma pauta de negociaç¨es que devem envolver toda a comunidade, sendo a manutenção de empregos e/ou salários e, eventualmente, a participação do Estado nos custos dessa manutenção, um dos fatores a considerar, sempre no intuito maior de assegurar a função social da propriedade empresarial, e não meramente o lucro das empresas.

Finalmente, quanto à chamada "questão tecnológica", esta, em absoluto, é motivo justificador da pretensão flexibilizante, assim entendida a redução dos patamares mínimos de retribuição salarial. Ao contrário, tendo em vista que os avanços tecnológicos são resultados de um considerável esforço de toda a sociedade (através das universidades, centros públicos de pesquisa, subsídios oficiais à ciência), seria de se esperar que os frutos de tal progresso sejam repartidos entre os parceiros sociais. Além do mais, é de se lembrar que os mais recentes melhoramentos tecnológicos, por exemplo, na robótica, incluem a apropriação pela máquina do saber tradicional do operário, incorporando seus conhecimentos empíricos de geraç¨es. Inteiramente injusto que o desenvolvimento motivado pela acumulação de tais saberes sirva unicamente ao empresário, importando para os trabalhadores em desemprego ou redução dos padr¨es remuneratórios.

A flexibilização no Brasil

Sob o Governo Collor de Mello, assistimos as conseqüências práticas da aplicação das idéias flexibilizantes no Brasil.

Durante dois anos e meio, promoveram-se esforços no sentido de desregulamentação da legislação laboral - em especial pela implementação da chamada "livre negociação salarial", bem como pelo desaparelhamento da fiscalização trabalhista e do Judiciário do Trabalho. Apesar do brutal arrocho salarial a que foram submetidos os assalariados, o desemprego aumentou drasticamente, sem que a inflação baixasse para níveis inferiores a 20%. Felizmente, o Governo Itamar Franco, mais sensível ao clamor nacional, sinaliza a mudança dessa funesta política de redução da renda nacional a pretexto de combate à inflação, ao acenar com uma nova política salarial, na recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo e na retomada do crescimento econômico.

São sinais alvissareiros de que toda a mobilização da juventude brasileira que precedeu o afastamento do Presidente eleito não foi em vão e que, embora todo o sofrimento dos últimos anos, o Brasil reencontra o caminho do progresso em benefício de seu povo.

CONCLUSÕES:

1. É necessário diferenciar-se, no debate sobre as modificaç¨es do Direito do Trabalho em face das transformaç¨es sócio-econômicas e tecnológicas, as propostas de simples adaptação das condiç¨es contratuais, sem prejuízo dos patamares mínimos previstos em lei das pretens¨es de redução e/ou eliminação desses direitos legalmente assegurados. Somente a estas últimas efetivamente caberia a denominação de propostas de "flexibilização" ou "desregulamentação", enquanto que às primeiras mais apropriadamente chamar-se-iam propostas de "adaptação".

2. Das tratativas que importem em flexibilização de direitos mínimos dos trabalhadores deve participar necessariamente o Estado, uma vez que sobre toda a sociedade recai os efeitos do desemprego ou da redução dos salários.

3. No Brasil, assim como nos países latino-americanos, tendo em vista a já excessiva concentração de renda e os níveis alarmantes de pobreza, deve-se encarar com preocupação e reserva qualquer proposta flexibilizante ou de desregulamentação, mormente quando implique retrocesso nos níveis históricos dos direitos e garantias sociais previstos na Constituição Federal.



Luiz Alberto de Vargas, Juiz do Trabalho, Presidente da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento do Rio Grande, Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Conselheiro da Associação Americana de Juristas, seção Rio Grande do Sul.