E acabou o poder normativo !...

Luiz Alberto de Vargas[i]

 

Ao que tudo indica - a tendência de voto dos congressistas[1], as declarações paradoxalmente coincidentes das principais lideranças de trabalhadores e de empresários, o empenho do governo na aprovação do projeto - o poder normativo da Justiça do Trabalho, prevista no art. 114 da Constituição Federal, tem seus dias contados e será, inapelavelmente, extinto em meio à Reforma do Judiciário.

 

Com o fim do poder normativo termina uma importante fase da Justiça do Trabalho que, depois de meio século de existência, perde, de um golpe, suas duas características mais peculiares e significativas :a representação classista e o poder normativo.

 

Sobre a primeira, muito já se falou e seria ocioso repetir argumentos que, em meio a um debate marcadamente corporativo e emocional, poucos escutaram. Que agora se diga apenas, como resumo, que a presença de juízes leigos na mediação, conciliação e arbitragem/julgamento de dissídios individuais trabalhistas, seja como instância prévia (Espanha), seja como instância judicial (França e Alemanha) é inquestionada na maior parte dos países industrializados - o que torna a quase unânime rejeição dos classistas no Brasil algo bastante pouco compreensível ao nível internacional.

Como já se disse em outro lugar[2], a extinção da representação classista poderia ter, como principal e indesejável efeito, o  deslocamento dos juízes leigos para fora do sistema jurisdicional, com  enfraquecimento e  perda de identidade da Justiça do Trabalho.

 

Sobre o poder normativo, entretanto, as conseqüências de sua extinção são ainda menos claras.

Durante anos, ressaltou-se, com certo escândalo, a característica absolutamente atípica de uma arbitragem pública obrigatória[3] e judicial, entendendo-a como uma extravagância autoritária. Para tanto utilizou-se de dois argumentos de pouca consistência :

a.  isolar a análise das instituições de suas raízes sociais e históricas, como se a existência atual do poder normativo não passasse de manifestação tardia de práticas manipulatórias anti-sindicais herdadas do fascismo[4].

b.  pretendeu-se ¨demonizar¨ o poder normativo em um contexto de rechaço de toda e qualquer intervenção estatal nas relações coletivas, apresentada esta como necessariamente nefasta para o interesse dos trabalhadores.[5]

 

 Independentemente das intenções dos que o criaram, o poder normativo brasileiro tornou-se o produto histórico que a luta social fez dele, sendo equivocado procurar compreendê-lo à base de um suposto ¨vício de origem¨.

Ademais, como se sabe, se o caráter judicial da resolução de conflitos coletivos de interesse  é peculiaridade brasileira, a presença forte do Estado está longe de se constituir novidade. Pelo contrário, pode se considerar mesmo como regra na maior parte dos países, onde a existência da mediação pública e, inclusive, da arbitragem pública é bastante freqüente e, de nenhuma forma, se pode tachar de antidemocrática.[6] De qualquer forma, é preciso lembrar que tais intervenções, em geral,  ocorrem através de representantes de órgãos públicos diretamente subordinados ao Poder Executivo, o que, sem dúvida, agrava o caráter mais politizado dessa intervenção, tornando-a, potencialmente, mais permeável a injunções da política econômica de ocasião. Comparativamente, a intervenção judicial se mostra muito mais estável e previsível, além de menos suscetível a tais pressões.

 

Um segundo aspecto, igualmente pouco lembrado, é que, historicamente, a intervenção estatal dos conflitos do trabalho atendeu a exigências dos próprios trabalhadores, em uma lógica de ¨institucionalização¨ da negociação coletiva.

 

Porém a questão mais olvidada do debate sobre o poder normativo parece ter sido a enorme importância da negociação centralizada - ou, pelo menos,da existência de mecanismos de ampliação das condições contratuais setoriais - seja como forma de homogeneização de conquistas dos trabalhadores, seja como forma de aumentar a racionalidade econômica de um ponto de vista de planejamento nacional.[7] Assim, foi através dos contratos nacionais que, historicamente,  se fez a ¨ capilarização¨ dos benefícios do progresso, ao mesmo tempo que foi também pela ¨pactos nacionais¨ que se repartiu menos traumaticamente os prejuízos da crise econômica. [8] 

 

A morte súbita do poder normativo não torna o sonho do ¨contrato coletivo nacional articulado¨ mais próximo da realidade, muito pelo contrário. De um ponto de vista prático, se criará uma virtual impossibilidade de estender a categoria de trabalhadores menos organizados as eventuais conquistas de categoria mais fortes, tal como sucedia quase automaticamente através de extensão das decisões em dissídio coletivo.[9]

 

A insistência com que setores sindicais de trabalhadores apontaram o ¨contrato coletivo nacional articulado¨ como opção necessariamente excludente do poder normativo os levou, aparentemente, a subestimar dois pontos-.chave para uma reformulação  mais equilibrada do sistema de relações coletivas :

1.  considerado o complicado quebra-cabeças do sistema coletivo brasileiro, o poder normativo seria uma das últimas peças a ser removida ou redesenhada, sob pena de provocar importante desequilíbrio que, com certeza, fragilizaria a parte débil na negociação, exatamente o trabalhador. Assim, os apelos veementes dos que propugnavam um ¨fase de transição¨[10] pareciam indicar a compreensão de um fato que, à primeira vista, poderia parecer óbvio :  a extinção do poder normativo, por si só, não representaria nenhum avanço - e muito menos seria pré-requisito - para a negociação nacional. Ao contrário, sua brusca extinção poderia significar um retrocesso no processo de aperfeiçoamento das relações coletivas no país.

2.  não é possível pensar-se em implementar contrato coletivo em âmbito nacional sem pensar na inafastável existência de um Estado onipresente  que, direta ou indiretamente, é sempre decisivo para o início, para o desenvolvimento e, mesmo, para os resultados da negociação, mormente em tempos de crise econômica.[11]

 

Por outro lado, o poder normativo sempre foi estigmatizado como anti-democrático por ocasião de decisões sobre manutenção de serviços inadiáveis em setores essenciais e por uma demasiada pressa no julgamento de dissídios de categorias em greve.[12]

Ao invés de criticar diretamente o conteúdo das decisões judiciais, entendeu-se de, com tons algo dramáticos, apontar,  como o cerne do problema (e do caráter  antidemocrático da intervenção),  uma suposta ilegitimidade de atuação do Poder Judiciário (o que é bem pouco inteligível em um Estado Democrático de Direito). De uma forma evasiva, se insinuou que o fim do poder normativo implicaria, por um lado, a possibilidade de criação de mecanismos mais democráticos para a fixação de percentuais  de serviços essenciais a serem mantidos pelos grevistas e, por outro lado, o fim de todo e qualquer poder de intervenção pública em caso de greve.

 

 Não é preciso que se recorra a análises comparadas para evidenciar a irrealidade de se pensar um sistema de relações coletivas sem levar em consideração a existência de alguma previsão legal de arbitragem obrigatória[13] ou de alguma intervenção estatal decisiva em caso de prolongamento do conflito coletivo[14]. De Tatcher (mineiros ingleses) a Aznar (aeronautas), a história recente é pródiga em exemplos de como os governos (entenda-se, o Poder Executivo) intervieram nos conflitos coletivos e utilizaram, sem constrangimentos, o peso do Estado para dobrar a vontade de importantes categorias de trabalhadores em greve, quando entenderam que estas poderiam prejudicar os interesse nacionais. Da mesma forma, a fixação do percentual de manutenção de serviços essenciais em outros países (feita, normalmente, pelos próprios empregadores[15], pelo Ministério do Trabalho ou, em última instância, pelo próprio Poder Judiciário, e sempre escrupulosamente respeitada pelos grevistas) demonstra como os percentuais fixados pela Justiça do Trabalho brasileira estavam longe de serem considerados abusivos.[16]

Apesar de tudo, a idéia, monocordiamente repetida, de que o fim do poder normativo seria ¨um passo adiante¨ se impôs.

Na iminência de dar esse ¨passo adiante¨, não se vislumbra perspectivas otimistas.

Em uma conjuntura bastante difícil, pode-se prever uma dificuldade crescente para que os trabalhadores mantenham, via negociação livre, as conquistas normativas acumuladas em tantos anos de poder normativo.

Dificuldades ainda maiores se pode prever para a chamada ¨reposição automática do salário¨, ou seja, a concessão de aumentos salariais em percentuais, no mínimo, iguais aos da inflação mais ganhos de produtividade.

A conseqüência mais notável será o  provável fortalecimento da empresa como instância negocial, em reforço substancial à tese do ¨sindicato de empresa¨, já que o fim do poder normativo implica, também, o fim de efetiva instrumentalização do monopólio legal de negociação assegurado aos sindicatos, organizados por categoria.[17]

Alguns vêem, na extinção do poder normativo, uma boa maneira de ¨enrijecer¨ os sindicatos obreiros, amolecidos por anos de ¨vida fácil¨, propiciada pela contribuição sindical obrigatória, pela unicidade sindical e pela dissídio coletivo automaticamente renovado a cada ano.

Esta é uma visão equivocada, que não percebe um movimento mais importante, qual seja, o de retirada do Estado brasileiro como garante de uma mais equilibrada repartição dos frutos do progresso, deixando à regulação econômica ao livre jogo do mercado.

Não se trata, propriamente, de uma novidade, eis que, em outros países, tal ¨modernização conservadora¨ [18] já é uma realidade sentida na carne dos trabalhadores  há muitos anos. O que sim, pode ser considerado novedio, é que esse evidente retrocesso para os trabalhadores possa ser confundido, por setores sindicais obreiros, como algo positivo.

 

 

 



[1] Este artigo foi publicado em agosto de 2000, às vésperas da votação, pelo plenário da Câmara de Deputados, da PEC da Reforma do Judiciário (Relatório Zulaiê Cobra). Apesar de aprovado na Câmara, o projeto foi totalmente reformulado no Senado, estando ainda em discussão naquela Casa Legislativa. Assim, apesar das fortes pressões contra o Poder Normativo, ainda não foi desta vez que ele foi extinto...

[2] Artigo com a colega Antonia Mara Vieira Loguércio, “Da Necessidade da Representação Classista”, apresentada no Encontro dos Magistrados do Trabalho do RGS, maio/97, Passo Fundo.

[3] A qualificação do poder normativo como uma modalidade de arbitragem obrigatória não é correta, pois, como se sabe, o Judiciário Trabalhista somente atua mediante provocação, das partes ou do Ministério Público do Trabalho.

[4] Em realidade, a originalidade da experiência brasileira - a resolução judicial de conflitos coletivos - tem origem em uma certa ¨compulsão homologatória¨ das relações coletivas, própria de um vertente estatalista mais próxima da República de Weimar do que do fascismo. De toda sorte, para o liberalismo, tanto o weimarismo como o fascismo não passam de expressões- ainda que distintas - do mesmo ¨pecado estatalista¨. Sobre as diferenças entre as versões totalitária e democrática do Estado como organizador social, ver BAYLOS, Antonio. ¨Derecho del Trabajo : Modelo para armar¨. 1991,  1a. edição, Editora Trotta, Madrid, pp. 30-34.

[5] Tal radicalismo antiestatista somente tem paralelo no ¨absenteísmo¨ inglês, em uma situação histórica e política absolutamente diferente : ¨Como es bien sabido, lo característico del sistema británico de protección de los derechos sindicales es la tutela ¨en negativo¨ de los mismos, es decir, exonerando a los sindicatos de la responsabilidad penal y civil que, de otro modo, incurrirían en aplicación de las normas generales del ¨common law¨. Mediante esta técnica se evitaba la aplicación de una regulación jurídica gravemente restrictiva, que ignoraba ¨la realidad propia de las constricciones sociales y de los poderes económicos¨ y que no valoraba el elemento colectivo en la regulación de las relaciones de trabajo¨ (BAYLOS, ob. cit. p. 40).

[6] A arbitragem pública é clássica, desde os anos trinta, em França, Itália, Espanha e Alemanha. Inclusive a arbitragem pública obrigatória era normalmente aceita pelos sindicatos de trabalhadores, que viam nesse modelo uma forma de compensar o desequilíbrio entre as partes em conflito. Somente com a ascensão do fascismo - e a mudança da natureza da intervenção (que passa a ser anti-democrática e negadora do conflito) é que modifica-se a opinião dos sindicatos sobre a arbitragem pública obrigatória.

[7] ¨A contratação coletiva, enquanto forma negociada das condições de trabalho (lato sensu) entre trabalhadores e empresários, foi fundamental no sentido de assegurar a elevação do poder aquisitivo dos salários segundo o ritmo da acumulação e da produtividade (rigidez à baixa) e de ampliar a segurança do trabalho. (...) Na Europa, apesar de variações, a contratação coletiva valorizou a centralização das negociações, com entidades empresariais e sindicais relativamente fortes, estruturadas nacionalmente, ainda que com formas e articulações variadas (em nível setorial, regional ou nacional). A contratação coletiva mais centralizada favoreceu uma maior solidariedade social, emprego e trabalho relativamente padronizados, distribuição de renda mais igualitária e um desenvolvimento mais homogêneo, com um welfare tendencialmente geral e completo (embora com diferenças importantes entre os países continentais e os da área anglo-escandinava¨. (MATTOSO, Jorge. A desordem do trabalho. 1995. Scritta,  São Paulo, p. 37.

[8] De fato, em fase de ascenso da economia, a constituição de ¨negociações centralizadas¨ fez parte de um conjunto de garantias laborais que caracterizou o período fordista - os ¨anos dourados¨ do capitalismo-, no qual a forte presença do Estado, como fiador e diretor do processo de desenvolvimento, é absolutamente imprescindível. Por outro lado, em momentos de descenso da economia, a crise  leva exatamente aos pactos trilaterais (Estado, patrões e empregados) nos quais a presença do Estado é mais uma vez decisiva.

[9] Essa hipótese já era denunciada por Tarso Genro : ¨Com a extinção do Poder Normativo, teremos no Brasil um movimento de categorialização das regras e, ainda, de acantonamento da produção da regra no âmbito da empresa e o  que deveria ser conquista, global, dos trabalhadores será conquista de um pequeno número de trabalhadores dos pólos mais modernos da atividade econômica¨ (GENRO, Tarso. ¨Em defesa do Poder Normativo e da reforma do Estado¨ in SZMUKLER, Beinusz (coordenador), Perspectivas do Direito do Trabalho , 1993, Livraria do Advogado, Porto Alegre. A esse respeito também FARIA, José Eduardo. Os novos desafios da Justiça do Trabalho, 1995, LTR, São Paulo, p. 37.

[10] Documento final do Fórum Barelli sobre o Contrato Coletivo de Trabalho.

[11] PITA MACHADO,Pedro Maurício e VARGAS, Luiz Alberto de.  "Relações Coletivas do Trabalho", com Pedro Maurício Pita Machado, aprovada no Encontro dos Magistrados Trabalhistas do RGS, Pelotas, 1995.

[12] De fato, a atuação da Justiça do Trabalho se caracterizou, nesses casos, pela antecipação do julgamento, muitas vezes impedindo que o processo de negociação se completasse ou que a própria pressão pretendida pelos trabalhadores pudesse alcançar efeitos concretos.

[13] Por exemplo, na Espanha, por decisão do Tribunal Constitucional, a arbitragem obrigatória é uma possibilidade legal em caso de prosseguimento da greve. Ainda que poucas vezes essa arbitragem tenha ocorrido no período democrático (duas vezes, apenas), é de se registrar que sua existência serve como fator inibitório do prosseguimento de greves, especialmente em serviços essenciais.

[14] É amplíssimo o leque de meios que um Estado dispõe para de pressionar os grevistas para que voltem ao trabalho. Desde ameaças de concessão massiva de permissão de trabalho para estrangeiros ou  a importação de produtos que deixaram de ser fabricados em função da greve, passando por medidas de pressão fiscal, todo governo tem um considerável arsenal para  utilizar contra as greves. A justificativa política para essas medidas sempre se escora no ¨interesse público¨, sem que se possa discernir bem onde esse termina e começa a interferência abusiva do poder público, inviabilizando, na prática, o exercício do direito de greve.

[15] Tal ocorre, na prática, em greves no serviço público, onde o empregador é a própria Administração Pública. É sabido que, nos últimos anos, as greves no setor privado se tornaram raridade, concentrando-se os movimentos paredistas, basicamente, onde o trabalhador ainda detém alguma situação de estabilidade no emprego, ou seja, no setor público.

[16] Tanto é assim, que exatamente esse aspecto ¨autoritário¨ do poder normativo (a intervenção da Justiça do Trabalho em caso de greve) é o único que remanesce no projeto de reforma constitucional, sem que, aparentemente, suscite demasiada polêmica. De qualquer forma, seria de perguntar-se : se não for a Justiça do Trabalho, a quem competirá a fixação dos serviços mínimos em greve em setores essenciais ? Será que os setores sindicais de trabalhadores pensam que a transferência desse encargo ao Ministério do Trabalho seria favorável ao interesse dos trabalhadores ?

[17] A situação tornar-se-á ainda mais difícil caso prospere a proposta de implantação imediata do pluralismo sindical, pelo qual cada sindicato representará, na negociação coletiva, somente seus associados. Em mais uma ¨acrobacia sem rede¨, se passará do modelo unitário para o pluralista sem cautelas mínimas, como poderia ser o da representação geral pelo sindicato majoritário, prevista no modelo espanhol.

[18] A expressão é de MATTOSO, ob. cit., p. 79



[i] Luiz Alberto de Vargas é Juiz do Trabalho, Presidente da 1a. JCJ de Pelotas, RS, doutorando da Universidad Pompeu Fabra, de Barcelona.