O professor e seu tempo de trabalho

      Cleusa Regina Halfen

Luiz Alberto de Vargas[1]

       

 

Qual a retribuição justa para o trabalho de um professor?

A resposta dependerá do ponto de vista do interlocutor. Sob a ótica do empresário da educação, provavelmente, o salário justo será o do livre mercado, aquele que resultar do equilíbrio entre a oferta e a procura, indiferente a quaisquer considerações éticas ou preocupações sociais.  

Certamente, isso não é o que pensa a sociedade civil brasileira em seu conjunto, uma vez que um dos poucos consensos nacionais justamente é o de que o imenso déficit com a educação somente pode ser superado com uma substancial elevação da remuneração dos professores. As erráticas tentativas de implementação de um piso nacional caminham nesse sentido, ainda que ainda muito longe de estabelecer um patamar remuneratório que torne atrativa a carreira do magistério no contexto de uma educação de qualidade.

Entretanto, a despeito das propostas  políticas bem-intencionadas, é forçoso reconhecer que as condições de trabalho dos professores pioram a cada dia, sendo a baixa remuneração o principal motivo para uma cada vez mais preocupante "fuga de talentos", a comprometer seriamente as esperanças de melhora do Brasil no ranking internacional de educação da Unesco.

Seria possível alterar tal situação através de uma melhor compreensão da importância social do trabalho do professor? Para isso talvez seja útil pensar a respeito das dificuldades de avaliação do trabalho docente.

A seguir, elencamos algumas dificuldades de mensuração do trabalho do professor, algo que contribui sobremaneira para a desvalorização de seu trabalho e, consequentemente, para a insuficiência remuneratória.

 

1. A difícil mensuração do trabalho intelectual.

Historicamente, o tempo despendido pelo trabalhador à disposição do empregador foi o campo de batalha das lutas salariais operárias. A redução da jornada de trabalho tornou-se a pauta quase-universal das reivindicações obreiras, marcando profundamente a concepção de que uma retribuição justa pelo trabalho implica necessariamente levar em conta a duração do trabalho. 

Porém, o trabalho intelectual não pode ser medido com a mesma régua do trabalho comum. Em geral, adota-se o clássico modelo taylorista da unidade-tempo, em que o relógio tornou-se o símbolo de toda uma era de profundas alterações produtivas.  Este é o atual parâmetro legal e boa parte das normas de proteção trabalhista está calçada na suposição de que bastaria limitar o tempo de trabalho, associando-o a determinado patamar remuneratório, para assegurar um eficiente freio à exploração patronal. Ocorre que, para o trabalho intelectual, tal forma de mensuração é notoriamente ineficiente, além de geradora de grandes injustiças. Afinal, como se pode pretender retribuir, em tempo de trabalho, o conceito produzido por um filósofo ou mesmo uma simples intuição de um físico teórico? Será que se poderia pensar que o valor de uma obra de arte possa ser calculado pelas horas despendidas pelo artista para produzi-la?

O trabalho intelectual, artístico ou científico é sempre o resultado de um longo e laborioso processo de maturação em que o tempo é fator secundário, já que o sucesso depende de fatores múltiplos, muitos aleatórios ou imprevisíveis, independentemente da intensidade do esforço ou da capacidade do autor. O esforço intelectual alterna períodos de intensa atividade com períodos de aparente inação, ambos absolutamente essenciais no processo criativo. 

O trabalhador intelectual, por definição, é um criador de bens imateriais que não podem ser medidos por metro ou quilo, muito menos podem ser devidamente valorados pela medida-tempo. Toda obra intelectual é uma superação criativa do presente e uma paciente construção de um futuro que, caprichosamente, não se submete facilmente aos desígnios humanos. Não é possível submetê-la ao ritmo dos ponteiros do relógio.

Portanto, apesar do contido no artigo 320 da CLT, parece pouco com a natureza do trabalho do professor a aplicação das regras da remuneração do trabalho a tempo parcial, como se o trabalho intelectual possa ser fragmentado e remunerado exclusivamente pelo tempo que puder ser medido e classificado pelo empregador como "efetivo". Não seria desarrazoado, portanto, pensar que, para o professor, fosse garantida a contratação sempre a tempo completo ou, no mínimo, garantida a remuneração de meio-turno, independentemente dos períodos de trabalho efetivo.

Também é prática recorrente vincular o salário à produção obtida pelo trabalhador, forma de retribuição ainda anterior ao modelo unidade-tempo e que, em geral, apresenta ainda maiores riscos de levar à superexploracão. Tanto é assim que, em algumas situações, a mais recente jurisprudência tem entendido que essa forma de retribuição é proibida, como demonstra o caso dos cortadores de cana, entendendo o TRT de Campinas que, em tal caso, a remuneração por produção estimula o trabalhador a laborar excessivamente, muitas vezes em detrimento de sua saúde física e mental[2]. Em casos extremos, o salário-produção constitui um estímulo a à sobrejornada, tornando-o o trabalhador vítima de uma danosa transferência de papéis, na qual a ambição por lucros do empresário se manifesta na compulsão do empregado em transformar seu esforço em resultados mensuráveis e, assim, em ganhos adicionais[3].

Esse tipo de risco atinge também – e talvez ainda mais fortemente - os trabalhadores intelectuais. O pensamento nunca descansa e, assim, o trabalho intelectual normalmente invade o campo da vida privada do trabalhador, normalmente  destinada ao lazer e à vida familiar. Assim, o trabalhador intelectual, de certa forma,  "nunca desliga" e, assim, nunca descansa. Para tanto, passa a ser necessário um esforço consciente de "desconexão", sem o qual pode ocorrer um sério comprometimento dae sua saúde psíquica do trabalhador.

Além do mais, quando se trata de trabalho intelectual, também a remuneração por tarefa não satisfaz, já que não se perde a essência do valor do trabalho intelectual, que se situa na qualidade da obra - e não na quantidade produzida. Apesar disso, como se trata de um forma eficiente de aumentar a produtividade, esse modelo é cada vez mais utilizado, mormente em se tratando de trabalhadores de alta qualificação, aparecendo sob a roupagem de "prêmios de produtividade", "participação sobre resultados", "gratificação de desempenho", entre outras tantas formas criativas de transferir para o trabalhador parte dos riscos empresariais na condução do negócio. 

Em realidade tanto uma como outra forma de remuneração se subordina ao mercado, que desconhece o valor social do trabalho, fixando o salário em função do preço final do produto posto à disposição do público e das expectativas de lucro dos empresários. Assim, para os professores, seu salário, independentemente da forma adotada, por unidade-tempo ou por produção, dependerá de quanto será possível ao empresário utilizar em favor de sua lucratividade o grande contingente de professores existente em um mercado precariamente regulado.

Aceitar que a remuneração do professor seja estritamente fixada pelas leis cegas da oferta e da procura importa abdicar definitivamente de qualquer possibilidade de falar em tornar atrativa a profissão de professor.

Certamente parte considerável dessa triste realidade deve ser posta na conta da sociedade, que parece pouco disposta a pagar mais condignamente os serviços educacionais. Mas tampouco se pode deixar de dizer que, atualmente, a educação privada em nosso país é um dos mais rendosos negócios, quando o bom-senso parece indicar que ele jamais poderia ser apenas mais um negócio. Se o preço final dos "serviços educacionais" é um problema econômico, o baixo preço desse principal - e essencial - "insumo produtivo" (o trabalho do professor) constitui uma verdadeira tragédia nacional.



2. O tempo de trabalho do professor

Se a remuneração por unidade-tempo parece uma inevitabilidade prática, uma injustiça ainda mais flagrante ocorre quando se pretende discriminar os tempos de efetivo trabalho para fins de retribuição salarial ao professor. 

Se a lei menciona que deve ser pago o tempo à disposição do empregador, a prática nas escolas é considerar que o professor somente se encontra "à disposição da escola" estritamente nos períodos em que exerce a atividade docente em sala de aula. Por tal sistemática, deixa de ser remunerada a "jornada invisível", ou seja, aquela desempenhada extraclasse na preparação das aulas, incluindo a confecção do material didático; na elaboração e na correção de provas e trabalhos; no atendimento individualizado a alunos. Além disso, não se considera que, hoje, exige-se o desenvolvimento contínuo do professor em um contexto de inovações científicas vertiginosas que tornam o outrora plácido mister de ensinar em um desafio permanente de atualização e de renovação de métodos de ensino. Trata-se aqui, não apenas da capacitação constante do professor - que, ao menos em tese deveria ser de responsabilidade também do empregador-, mas de tornar o professor inserido no mundo globalizado, com as informações cotidianas compartilhadas por seus alunos, tornando-o minimamente competitivo com as atraentes mensagens (ainda que incompletas, equivocadas e caóticas) do "professor Google".  Todo esse necessário tempo necessário para a atualização/capacitação do professor também é invisível e, em geral, não é considerado tempo efetivo de trabalho pelo empregador. 

A injustiça de tal situação é flagrante. Todo esse trabalho excedente deve ser considerado como não- remunerado pela retribuição em horas-aula e, por consequenciaconsequência, deve ser considerado como integrante da chamada "hora-atividade", que é prevista nos artigos 13 e 67 da LDBEN. Assim tem sido decidido em algumas decisões trabalhistas e foi objeto de recente alteração legislativa, no caso a Lei 11.738/2008.

Alem  dos trabalhos excedentes que caracterizariam o trabalho invisível que ensejariam em tese a hora-atividade, os estabelecimentos de ensino costumam exigir  outros tipos  de prestação laboral que, apesar de não serem de  modo algum invisíveis, tampouco são remunerados. Assim, em tempo em que novos métodos educacionais privilegiam abordagens individualizadas, os professores são chamados a apresentar avaliações detalhadas, pareceres psicopedagógicos, relatórios circunstanciados sobre o desempenho dos alunos, inclusive sobre seu comportamento. A isso se soma todo um leque de procedimentos administrativos, que não se resumem mais aos tradicionais cadernos de chamada e relatórios de notas, mas incluem projetos pedagógicos e pareceres diversos. Cada vez mais é exigida a participação do professor na escola e fora dela. Proliferam as semanas acadêmicas, os jogos escolares, as feiras científicas, as festas comemorativas em datas especiais, os seminários temáticos. Fora da escola, ainda é exigida a presença do professor em “workshops”, eventos científicos, seminários de capacitação que, em geral,  ocorrem fora do horário escolar. Todas essas atividades devem ser consideradas como típica prestação de trabalho e devem ser remuneradas, seja como horas-aula (quando habituais), seja como horas extras (quando excepcionais).

Uma parte considerável desse trabalho é desempenhada pelo professor desde sua própria casa através da internet. O trabalho em domicílio torna ainda menos visível o trabalho burocrático, ainda que, pelos modernos recursos informáticos, o controle patronal sobre esse tipo de trabalho - inclusive horário - seja ainda mais severo do que pelos meios convencionais. Assim, nada justifica que a prestação de trabalho em domicílio não seja remunerada, como prevê expressamente a CLT.

A remuneração, aqui, embora importante, deve abrir espaço para uma discussão ainda mais relevante. A sobrecarga de trabalhos cometida[GC1]  ao professor, especialmente aquela a ser desempenhada desde sua casa, coloca em questão se tais excessos podem ser compensados apenas através do pagamento de horas extras ou de horas-atividade. Trata-se aqui de assegurar ao trabalhador seu direito ao descanso, ao convívio familiar e ao lazer, algo que pode ser particularmente difícil para os trabalhadores em domicílio.

A tecnologia levou o conhecido "levar trabalho para casa" a níveis desconhecidos. Agora, é o trabalho que invade a casa do trabalhador, instalando um escritório da empresa em meio à residência familiar. Os dispositivos móveis, como celular, “palm-top” ou “tablets”, vão mais além e criam um "escritório virtual" onde quer que o trabalhador se encontre, seja no trânsito, no restaurante ou, mesmo, no futebol.  

"Desconectar" significa desligar ou afastar-se do trabalho, de forma consciente, criando um "vazio" a ser preenchido por outros interesses e motivações igualmente importantes na vida. Para o trabalhador intelectual, esse afastamento requer um esforço consciente e determinado por um período razoável de tempo, sem o qual o descanso efetivamente não ocorre. Sem um período mínimo de desconexão, sem interrupções ou pressões de qualquer tipo, o trabalhador fatigado não se recupera.

A legislação brasileira prevê a remuneração pelo tempo em que o trabalhador fica em regime de plantões em casa (sobreaviso) ou na própria empresa (prontidão), mas não antecipou essa possibilidade do trabalho “acompanhar o empregado” em qualquer lugar em que ele se encontre. Muito menos a de o empregado ser “acionado remotamente” pelo empregador em qualquer lugar em que esteja, nem que seja “lembrado de seus compromissos” em meio a seus períodos de descanso, gerando sentimentos de culpa ou de preocupação por ter -se afastado de suas tarefas profissionais.

A proteção da dignidade do trabalhador contra essa avassaladora usurpação dos espaços de sua vida privada não pode se limitar a um mero acréscimo salarial. Há de se impor limites ao poder patronal de exigir a prestação de trabalho em horários e dias destinados ao descanso.

Assim, deve-se avançar para criar normas, legais ou convencionais, que efetivamente proíbam ao empregador exigir do empregado qualquer tipo de prestação laboral em dias destinados ao descanso e, nos dias úteis, depois de determinada hora (por exemplo,. 22h)

Tal proibição se estende a chamadas telefônicas, envio de e-mails, mensagens eletrônicas ou comunicações de qualquer tipo, de modo a permitir que, em períodos de descanso, o trabalhador efetivamente goze de um direito à desconexão.

 

Conclusões:

 

-                    O trabalho do professor mostra-se pouco compatível com a contratação a tempo parcial, apesar do contido no art. 320 da CLT, o que está a requerer alteração legislativa;

 

-                    O exercício da profissão de professor exige o desempenho de uma “jornada invisível” para preparação de aulas, elaboração e correção de provas e estudos individuais, que pode e deve ser retribuída pela chamada “hora- atividade”, que, na falta de outro parâmetro, pode ser fixada como sendo de 1/3 do tempo total contratado;

 

-                    A exigência de prestação de trabalho na forma de participação em reuniões, apresentação de relatórios e pareceres, comparecimento a seminários deve ser integralmente retribuído retribuída ao professor;

 

-                    O trabalho prestado pelo professor em domicílio, quando exigido pelo empregador, igualmente deve ser remunerado, independentemente do pagamento da hora-atividade;

-                    A preservação da saúde mental e psíquica do  trabalhador exige que se imponha limites à possibilidade do empregador conectar o empregado em dias destinados ao descanso,  bem como depois de determinada hora do dia.



 

 



[1]             Cleusa Regina Halfen é Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

              Luiz Alberto de Vargas é Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

[2]             Por ser uma atividade penosa capaz de levar o trabalhador à morte por exaustão, o corte de cana não pode ser remunerado por produção. (TRT-15 0001117-52.2011.0081.15 ). O TST também entendeu o problema, ainda que a solução adotada seja insatisfatória (OJ 235. Horas extras. Salário por produção. “O empregado que recebe salário por produção e trabalha em sobrejornada tem direito à percepção apenas do adicional de horas extras, exceto no caso do empregado cortador de cana, a quem é devido o pagamento das horas extras e do adicional respectivo) 

[3]             A esse respeito ver também a Lei do  motorista (n. 12.619/2012), art. 236-G e a  Lei dos motociclistas profissionais -“motoboys (n. 12.436/201), art. 1o., inciso I.


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