A LUTA PELA LIMITAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO E O CONTROLE DE PONTO ELETRÔNICO

Paulo Luiz Schmidt (*)

Luiz Alberto de Vargas (**)

 

 

 

 

1.    A luta pela limitação da jornada e o país do “faz-de-conta”.

 

A limitação da jornada de trabalho é peça-central das lutas sindicais e se constitui em um dos pontos principais da agenda social dos chamados Estados de Bem-Estar Social. Não se trata, portanto, apenas de uma importante reivindicação obreira, mas tem profundas repercussões econômicas, sociais e políticas, seja como mecanismo de redistribuição de renda e de fomento ao crescimento econômico, seja como medida de saúde pública e de bem-estar da população ou, ainda, como fator de rearranjo do poder dentro da sociedade no rumo de uma desejada maior igualdade real.

Assim, a luta histórica pelas 8 horas de trabalho diário (“Eight hours to work, eight hours to play, eight hours to rest”) foi o mote de um movimento político do qual resultou a consagração do direito social à limitação da jornada diária de trabalho, que se incorporou juridicamente de forma universal, inclusive na Constituição de muitos países.

Tal movimento não se deteve na conquista das 8 horas diárias, mas prosseguiu através da reivindicação de limitação à jornada semanal, transformando-se na consigna pelas 44 horas semanais e, atualmente, na luta pelas 40 horas  (Brasil) e 35 horas (Europa).

Ocorre que a universalidade dessa reivindicação não deve obliterar uma visão realista que constate que a efetivação dessas conquistas legais é muito diferenciada, de país para país, variando conforme seu desenvolvimento social e econômico.  Na verdade, em países periféricos (ou semi-periféricos), como o Brasil (ainda aprendiz de sociedade mais desenvolvida), a real limitação da jornada de trabalho – como tantos outros direitos previstos na Constituição de 88 – se constitui ainda em mera promessa a ser efetivada, dependendo da vontade política de nossos dirigentes.

No país do “faz-de-conta”, todos sabemos que um trabalhador brasileiro labora muito mais do que 44 horas semanais, sendo que, na maior parte dos casos, esse trabalho não é pago conforme determina a lei. O não pagamento das horas extras não prejudica apenas o trabalhador, mas também a própria sociedade.

Em primeiro lugar, porque a própria permissão legal para o trabalho em horas extras contraria o grande objetivo social de assegurar o pleno emprego. Cada oito horas extras realizadas por dia, em tese, dispensam a contratação de um novo empregado. O instituto das horas extraordinárias, como o próprio nome já indica, deveria ser destinado exclusivamente para situações excepcionais. Tornando-se corriqueira e habitual a prestação de horas extras, ocorre uma evidente distorção desse instituto, permitindo-se que o empregador reduza seus custos produtivos pela dispensa da contratação de trabalhadores adicionais.

Em segundo lugar, o prejuízo social é ainda maior quando as horas extras não são pagas ou são apenas parcialmente pagas. Nesse caso, há uma grave violação dos direitos dos trabalhadores e, também, há uma sonegação de contribuições sociais imprescindíveis para o financiamento da seguridade social (Previdência Social, FAT, Seguro-desemprego, Seguro-acidente, etc.).

Conforme estimativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho, as empresas deixam de pagar, anualmente, no Brasil, R$ 20,3 bilhões relativamente a horas extras, sonegando R$ 1,6 bilhões ao FGTS e R$ 4,1 à Previdência Social. Assim, deixam de ser gerados 1 milhão de empregos por ano.[1]

Vivemos sob distintos regimes, do autoritarismo para a democracia, sem que essa situação se alterasse substancialmente. Considerando que a jornada diária de trabalho de oito horas foi prevista na CLT em 1946, é forçoso reconhecer que o descumprimento impune de tão basilar norma de proteção trabalhista significa uma conivência social com o desrespeito aos direitos dos trabalhadores. Ou seja, aparentemente a sociedade brasileira, através de seus poderes políticos, concorda que parte da prestação de trabalho fornecida pelos trabalhadores seja gratuita.

A tolerância da sociedade brasileira com a iniqüidade do trabalho gratuito de siginificativa parte dos trabalhadores nacionais se expressa, precipuamente, no escasso respaldo que se dá às instituições encarregadas de assegurar o cumprimento da legislação trabalhista e previdenciária.

Assim, é conhecida a precariedade das condições em que opera a Fiscalização Trabalhista, seja pelo reduzido quadro de Auditores-fiscais, seja pela extrema complacência da legislação com os infratores, que prevê multas irrisórias e que somente são pagas ao final de um longo processo administrativo.

Do mesmo modo, a Justiça do Trabalho carece de condições de assegurar o cumprimento da lei. Como é sabido, esta somente logra examinar situações pretéritas, já que a quase-totalidade dos que acodem ao Judiciário Trabalhista o fazem quando desempregados. Por deficiência da legislação material – que não assegura a proteção contra a despedida imotivada a despeito do que consta no art. 7, I da Constituição Federal –,  os empregados sentem-se inibidos em acionar o empregador por justificado receio de perder o emprego, o que torna a Justiça do Trabalho em boa medida uma “Justiça dos Desempregados”.

Não fosse suficiente, quando essas demandas chegam ao Judiciário, a legislação processual oferece grande dificuldade para que o empregado logre provar algo que, como se sabe, é usual e amplamente conhecido: que o trabalhador cumpre uma jornada bem mais extensa do que a contratual e legal.

Como o ônus de prova incumbe, normalmente, a quem alega, não resta ao trabalhador outro caminho que não o de tentar provar a prestação das horas extras através de testemunhas. Tal encargo não é fácil, uma vez que o empregado não pode contar com colegas ainda empregados, que, com inteira razão, recusam-se a depor pelo risco de serem despedidos por represália patronal. Somente resta, assim, lançar mão de colegas ex-empregados da empresa reclamada, sendo que em relação a estes, em geral, seus depoimentos são contraditados por manterem ressentimento contra o empregador ou por moverem demanda contra estes (em geral, pelas mesmas causas que motivaram a demanda).

 

2.    A prática dos processos trabalhistas e o controle de ponto.

 

Um dos grandes óbices à obtenção dos dados reais da prestação laboral em casos concretos decorre de ser a empresa um “universo fechado”, sob controle incontrastável do empregador, que encara com reservas qualquer intervenção de autoridades públicas, administrativas ou judiciais. Além disso, o empregador, como detém o poder de direção, mantém todo o histórico da relação trabalhista, o que importa em grande desigualdade no momento de provar fatos acontecidos no curso dessa relação. A desigualdade real entre as parte é enorme e ela se expressa também dentro do processo.

A larga experiência dos juízes trabalhistas ao longo dos anos, em incontáveis processos em que se discute o pagamento de horas extras, levou a medidas legais ou práticas que visaram contornar as imensas dificuldades de conhecimento da verdade, tornando mais acessível o que ocorre no “chão-da-fábrica” por trás dos muros da empresa.

Assim, o art. 74, parágrafo 2º da CLT determina que, em empresas com mais de dez empregados, deve o empregador manter (e apresentar quando solicitado) o registro diário dos horários de trabalho prestados pelo trabalhador.

Através desse dispositivo legal, consagrou-se uma prática judicial que incorporou a exigência lógica de que a produção da documentação relativa ao histórico do tempo de trabalho prestado pelo empregado (fundamental para cálculo da prestação de trabalho objeto do contrato de trabalho) deveria ser bilateral e sobre ela recaía mais do que interesse das partes contratantes, mas verdadeiro interesse público.

Afastou-se, assim, a falácia que a produção de tal documentação coubesse exclusivamente ao empregador, privilégio que supostamente decorreria da propriedade dos meios de produção e do poder de direção assegurado ao empregador. Se fosse assim, estar-se-ia aceitando que, em um contrato bilateral e sinalagmático, uma das partes, unilateralmente, sem qualquer limite, controle ou fiscalização, pudesse determinar a “medição” da prestação ofertada pelo empregado (tempo de trabalho) e, assim, determinar o “preço” a ser pago (salário). Seria o mesmo que, em um contrato de compra-e-venda, o comprador ter o poder de estabelecer a quantidade de mercadorias de que se apropriaria pela quantidade de dinheiro que se dispusesse a pagar. Tratar-se-ia de um absurdo jurídico, a própria negação da convergência de vontades que essencialmente caracteriza os contratos bilaterais.

Além disso, a obrigatoriedade  de anotação do ponto contida no art. 74 parágrafo 2º da CLT denota que estes são de interesse público, já que a conservação de tais registros sob responsabilidade do empregador diz também respeito à possibilidade de fiscalização por parte das autoridades administrativos e judiciais. Não poderia ser de outra maneira, já que se trata de documentos fiscais, sobre os quais são feitos os cálculos das contribuições previdenciárias e fiscais a serem recolhidas pelo empregador. Portanto, tal documentação, desde e quando produzida bilateralmente e sujeita a critérios de confiabilidade conduz a presunção de fidedignidade dos dados de entrada e saída do trabalhador do trabalho neles contida, representando prova pré-constituída a ser produzida em juízo.

A prática judiciária elevou tal documentação a um grau de certeza pouco usual no processo trabalhista, somente equiparável aos recibos assinados pelo empregado.  Em contra-partida, também jurisprudencialmente, quando ausentes ou não apresentados tais registros de horário, passou-se a entender como confesso o empregador quanto às alegações de horários de trabalho feitas pelo empregado. Tais critérios não beneficiam apenas o empregado, mas, em especial, o empregador cumpridor de seus deveres, que tem a favor de si a presunção de veracidade dos documentos que apresenta em juízo.

Por muito tempo, a prova testemunhal no Judiciário do Trabalho limitou-se aos casos em que não era obrigatório o controle de ponto ou, quando existisse e fosse apresentado em juízo, quando este fosse impugnado pelo empregado.

A prova testemunhal se concentrava, primordialmente, em demonstrar que o empregado “batia” o ponto e voltava para trabalhar. Na decisão quanto à veracidade dos registros horários, alguns critérios práticos restaram estabelecidos:

- que as marcações fossem realizadas pelo próprio empregado, não se admitido que estas fossem feitas por apontadores, supervisores, porteiros ou chefes;

- que os registros fossem produzidos no exato momento da entrada e da saída do empregado, não se admitindo relatórios posteriores (ainda que assinados  pelo próprio empregado);

- que os registros fossem completos ou seja, que contenham, além da identificação do empregado e do setor de trabalho, o dia do mês e da semana, bem como os horários de entrada e saída, não se admitindo a simples aposição do horário contratual (pré-assinalação) – exceto no caso dos intervalos. Inadmissível, portanto, o chamado “ponto por exceção”, ou seja, que, a pretexto de simplificação, a anotação apenas dos horários que excedem a jornada contratual, como “ocorrência eventual”, dispensando-se a marcação dos horários de entrada e saída do trabalhador. O mais famoso caso de “ponto por exceção” são as FIPs (“Folhas Individuais de Presença”) do Banco do Brasil, amplamente rejeitadas pelo Judiciário do Trabalho por não cumprirem os requisitos do art. 74 parágrafo 2º da CLT.

- que os registros devem ser precisos, sendo inaceitáveis a aposição de horários invariáveis (“ponto britânico”), seja a pretexto de arredondamento, seja a pretexto de compensação do excesso de jornada com redução em outro dia ou a qualquer outro título.

- que os registros sejam permanentes, de modo que, uma vez feitas as marcações pelo empregado, estas não possam ser alteradas por quem quer que seja;

- que os registros sejam assinados pelo empregado.

 

Todos esses critérios para aferição da confiabilidade dos registros, criados ao longo de muitos anos em prol da segurança jurídica, foram postos por terra a partir do advento dos chamados “pontos eletrônicos” que foram implantados unilateralmente pelo empregador, sem qualquer discussão prévia com os trabalhadores, sindicatos ou com as autoridades públicas.

Como as marcações nos controles de ponto eletrônico não mais deixam vestígios físicos, mas se transformam em dados digitalizados, sua apresentação passa a ser feita na forma de “relatórios” que, podem ou não, dependendo da manipulação dos dados feita pelo empregador ser fiel às marcações originalmente produzidas pelo empregado. Perdem-se, de uma vez, todas as características que permitiam distinguir entre os registros verdadeiros e os registros falsos: não há mais certeza que estes tenham sido produzidos pelo empregado, nem nos horários ali declarados.

Caso o empregado, em juízo, queira impugnar tais relatórios através de testemunhas, sua tarefa será grandemente maior: não será mais possível, como antes ocorria,  demonstrar que ele “bateu” o ponto e voltou para trabalhar.  Agora, na situação criada pelo ponto eletrônico, terá que demonstrar que saiu do trabalho em determinado horário, “bateu” corretamente o ponto na saída e que este simplesmente “sumiu” dos registros eletrônicos mantidos pelo empregador...

A Fiscalização Trabalhista terá sua tarefa praticamente inviabilizada: não bastará constatar, como antes, que trabalhadores continuam laborando na empresa com horário de saída já registrado no cartão-ponto.  A sonegação das horas extras somente se operará, ao final do mês, entre as paredes do Departamento de Pessoal da empresa, bem longe das vistas do Auditor-Fiscal...

Finalmente, ao Juiz do Trabalho não restará outro caminho do que ouvir incansavelmente testemunhas para conhecer a realidade da relação contratual, baixando ao detalhe de cada hora extra em cada dia de trabalho que teria ou não sido sonegada pelo empregador.

Esta situação inaceitável levou a entidade nacional representativa da Magistratura do Trabalho a demandar ao Ministério do Trabalho que regulamentasse a matéria, como é de seu dever, por força do próprio art. 74 parágrafo 2º, quando prevê que lhe compete expedir instruções que regulamentem os sistemas de controle de ponto em empresas com mais de dez empregados.

 

 

3.    A regulação do ponto eletrônico

 

A edição das Portarias 1510/2011e 373/2011 representa um grande avanço na moralização dos sistemas de ponto eletrônico.

As referidas Portarias partem de um inteligente critério: o de que os fabricantes de sistema de ponto eletrônico devem se responsabilizar pela confiabilidade dos equipamentos e sistemas informatizados que apresentam ao mercado, da mesma forma como qualquer fabricante é responsável pelo que produz e comercializa.

Assim como é inadmissível que algum fabricante ponha à disposição dos consumidores produtos perigosos à saúde ou à segurança da população, certamente não é concebível que fabricantes de sistemas de ponto eletrônico ponham no mercado produtos que possam ser utilizados para fraudar direitos do empregado ou para sonegar tributos ao Erário Público, sem que, pelo menos, fique clara a imprestabilidade desses produtos para fins de comprovação trabalhista ou fiscal.

Por outro lado, tal como faz o IMETRO, as Portarias remetem a órgãos especializados a certificação de que os sistemas de ponto eletrônico atendem ou não as exigências mínimas

E, evidentemente, declara-se  que sistemas que não detenham a certificação de atenderem tais exigências mínimas são imprestáveis para os fins de cumprimento das exigências do art. 74 parágrafo 2º da CLT. Assim, nenhum empregador necessita utilizar o controle de ponto eletrônico. Mas se tiver mais de dez empregados e quiser usar tais sistemas, há de fazê-lo através de um sistema certificado que assegura a confiabilidade dos relatórios por ele produzidos.

Certamente não se pode sustentar que o Ministério do Trabalho tenha excedido de sua competência. Em primeiro lugar, porque há a expressa previsão para expedição de instruções regulatórias, como já se viu.  Em segundo lugar, porque logicamente cabe ao Ministério, que tem o dever de fiscalização das relações de trabalho, estabelecer parâmetros para a produção de documentação fiscal isenta de fraude ou sonegação.

As Portarias são de um bom-senso e de uma coerência tais que parece difícil entender por que razões as entidades representativas do empresariado nacional manifestaram-se tão ruidosamente contra elas...

 

Com a adoção generalizada de tais sistemas padronizados de Registros Eletrônico de Ponto (REP), pode-se certamente esperar que diminuam sensivelmente os conflitos entre empregado e empregador relativamente à contagem das horas de trabalho laboradas.

 Como cada empregado poderá ter um pequeno extrato de cada marcação de horário produzida, ambas as partes passam a contar com  uma confiável documentação, bilateralmente produzida, que se constituirá, judicialmente, em uma prova cabal da jornada realizada, possivelmente tornando dispensável a realização da sempre tormentosa prova testemunhal.  O empregado terá certeza quanto às possibilidades de demonstrar em juízo eventuais horas extras trabalhadas, já que poderá requer ao juiz que determine ao Oficial de Justiça a coleta dos dados brutos contidos no REP (“Arquivo-fonte de dados” – AFD) e sempre disponíveis através de um simples acesso ao sistema por um simples ”pendrive” acoplado à chamada “porta fiscal” (todo sistema deverá conter um porta serial especificamente para tal finalidade). Já o empregador terá a certeza de que os relatórios apresentados (com todas as modificações que forem necessárias – compensações, retificação de marcações equivocadas, etc.), os chamados “dados tratados” (apresentados no chamado “Arquivo-fonte de dados tratados”- AFDT) poderão ser facilmente cotejados com os dados brutos (AFD), dando rastreabilidade e confiabilidade às alterações produzidas pelos DRHs das empresas, o que será especialmente valioso quando se tratar de conferir os denominados “bancos de horas”. Os relatórios empresariais assim produzidos – e facilmente conferíveis – passam, novamente, a se constituir em prova pré-constituída, gerando presunção “juris tantum” relativamente aos horários de trabalho do empregado.

A edição de tais normas regulamentadoras pelo MTE pode representar um novo tempo para as relações de trabalho no Brasil, para a Fiscalização Trabalhista e para o Judiciário do Trabalho.

E, sem dúvida, representará mais um passo no rumo de uma maior restrição ao prolongamento abusivo da jornada de trabalho no Brasil, dando efetividade ao mandamento  contido no art. 7, XIII da Carta Magna.



[1] Dados disponíveis em http://www.panoramabrasil.com.br/com-horas-extras-nao-pagas-brasil-perde-1-milhao-de-empregos-id41537.html. Acesso em 17/7/2011.