GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO [1]

Luiz Alberto de Vargas e Ricardo Carvalho Fraga  

A greve sempre foi ponto de difícil ponderação para a doutrina, pelas amplas conseqüências sociais e políticas de qualquer movimento paredista.  Pelos mesmos motivos,  nenhum Estado desistiu de regular o conflito. Conforme Norberto Bobbio, “a partir do momento em que o Estado avocou a solução dos conflitos, ele passou a dever Justiça”. Para tanto, “o Estado deve regular o exercício do direito de greve, não no sentido de restringi-lo, mas de garantir o bem estar comum, e, por outro ângulo, retirar as causas geradoras de que movimentos dessa natureza são consequência”.

Ao contrário do que pregavam os teóricos do “absenteísmo” ou da não-participação do Estado na intermediação dos conflitos coletivos, a intervenção estatal acentuou-se, a ponto de surgir, a partir dos anos 80, o chamado “neocorporativismo”, pelo qual se procura dar conta da sobrecarga das pretensões e das expectativas sociais no circuito político-democrático pela incapacidade do sistema parlamentar e da administração pública em canalizar o conflito. Através dele, recorre-se à institucionalização de mecanismos de conciliação entre o governo, os sindicatos e as associações profissionais. Também como consequência desta tendência à institucionalização dos conflitos coletivos,  a greve, antes considerada um “caso de polícia”, passou, paulatinamente, a ser encarada como um “caso de política”, ganhando reconhecimento como forma legítima de pressão social dos trabalhadores na busca de solução de conflitos coletivos, bem como instrumento efetivo dos mesmos em prol da melhoria de sua situação social.

 A greve, assim, é elemento fundamental da luta dos trabalhadores, configurando-se como manifestação da chamada “autonomia privada coletiva”, inerente das sociedades democráticas.

Em uma  conceituação clássica, greve "é a suspensão do trabalho levado a cabo concertadamente por uma coalizão de trabalhadores com o objetivo de lograr o equilíbrio entre os fatores de produção, logrando-se com ela a aplicação efetiva de uma justiça social no âmbito dos interesses do capital e do trabalho".

 O registro do conceito "clássico" não pode nos fazer esquecer que a realidade ocorre com muito maior  riqueza do que as tentativas de sua análise e previsões.  A greve pode ocorrer, não somente por razões econômicas, mas  também por razões políticas, sociais ou mesmo de solidariedade.

A Constituição Brasileira é bem clara, ao não limitar a greve no campo das reivindicações meramente econômicas, mas, ao contrário, deixando unicamente aos próprios trabalhadores a decisão sobre a oportunidade da greve e os interesses a serem por ela defendidos (art. 9º,  CF).

  Pode-se lembrar que a greve de servidores, talvez, seja algo novo, não previsto ao início do sistema capitalista. Hoje, com a maior presença do Estado e um número crescente de servidores públicos, é fenômeno que não pode ser desprezado. A superação da idéia liberal do “Estado gendarme” levou a que este assumisse, cada vez mais, atividades outrora reservadas para a iniciativa privada, ao mesmo tempo em que, paralelamente, também a iniciativa privada desenvolvesse “serviços de alto interesse e essencialidade” o que levou à uma “considerável aproximação do setor público à situação do setor privado”, de modo que “a distinção em quanto ao exercício do direito de greve já não pode passar, lisa e rasamente, pela linha divisória entre um e outro”. Exige um tratamento na doutrina e na legislação. Certamente, tem peculiariedades diversas da greve "clássica" do empregado contra o empregador, acima de tudo, porque na outra parte está a sociedade toda. De qualquer modo, na sua origem, existe a exata mesma situação de um trabalhador buscando melhores condições de trabalho.

Pela Convenção n. 98, IV, tem o Estado o dever de adotar medidas adequadas às condições nacionais para estimular e fomentar o pleno desenvolvimento e o uso de procedimentos de negociação coletiva voluntária, com o objetivo de regular, por meio de convenções coletivas, as condições de emprego.

Já a Convenção  n.154 estabelece que a negociação coletiva deva ser possibilitada a todos os empregados e a todas as categorias de trabalhadores, de todos os ramos de atividade, inclusive aos trabalhadores da Administração Pública, ressalvado, quanto a estes, que a aplicação das normas possa atender formas diferenciadas que atendam as peculiaridades da legislação ou das práticas nacionais. Especificamente em relação aos servidores públicos, a Convenção n. 151, 7º prevê que “deverão ser adotadas  medidas adequadas às condições nacionais para estimular e fomentar as autoridades competentes e as organizações de empregados públicos acerca das condições de emprego ou de quaisquer outros métodos que permitam aos representantes dos empregados públicos participar na determinação de tais condições”.

Finalmente, o Comitê de Liberdade Sindical da OIT considera o direito à negociação coletiva um componente essencial à liberdade sindical.

 

Como pondera Oscar Ermida Uriarte, “en todo sistema de solución de conflictos del trabajo en los servicios esenciales, el problema fundamental radica en que forzosamente su finalidad es evitar una interrupción prolongada – y en algunos casos  cualquier interrupción – de ciertas actividades”, lo que inevitablemente implica la introducción de algún límite al ejercicio del derecho de huelga: “se trata, pues, de establecer un equilibrio entre el interés general y los derechos de las partes en conflicto”.

 

As controvérsias sobre o direito dos servidores públicos à greve se situam num patamar ainda anterior, qual seja, se os servidores públicos são trabalhadores – e, assim, a relação com  seu tomador de serviços (o Estado) é uma relação bilateral ou, ao contrário, estamos diante de uma relação unilateral em que, em nome do interesse público, o Estado impõe as condições de trabalho sem espaço para a negociação contratual. Para a maioria dos autores, a bilateralidade foi introduzida pela Constituição de 1988, que, a par dos princípios anteriores de direito administrativo (moralidade, legalidade, etc.), incorporou princípios novos, dentre os quais o mais importante, "o da bilateralidade do vínculo funcional, verdadeira contrariedade para os administrativistas clássicos".  

No campo do direito do trabalho, na esteira de uma cada vez mais presente participação do Estado em atividades antes restritas ao setor privado, assistimos a uma verdadeira “celetização” de relações antes marcadas pelo regime estatutário. Passaram a fazer pouco sentido as doutrinas que negavam ao servidor público direitos de natureza contratual.

Superando uma noção muito restrita de "interesse público",  na esteira das modernas Constituições, a Carta Magna brasileira reconhece que o interesse público se encontra também na base dos direitos fundamentais dos trabalhadores, entre os quais estão o direito de sindicalização e o direito de greve. De tal direito, não se exclui os servidores públicos, na medida que o art. 9º da Constituição Federal assegura o direito de greve a todos os trabalhadores, não discriminando os servidores públicos. Da mesma forma, não há dúvidas de que os servidores públicos civis gozam de direito de sindicalização (art. 37, VI, CF) , já que, quanto ao militares há expressa proibição (art. 42 parágrafo 5º, CF).

Quando da edição da Lei 8.112/90, que institui o regime único dos servidores públicos civis, foram previstos, pelo menos, dois pontos importantes, que significavam um avanço no estabelecimento dos direitos sindicais dos trabalhadores da Administração Pública:  o direito à negociação coletiva e ao dissídio coletivo (art. 240, alíneas “d” e “e”). Entretanto, o STF afastou esses avanços através de ADIN 492-1, que, já liminarmente, entendeu pela inconstitucionalidade da extensão aos servidores públicos da Administração direta  dos direitos à negociação coletiva e ao ajuizamento de dissídio coletivo, decisão, posteriormente, confirmada no mérito. O fundamento da decisão remete à superada teoria da unilateralidade.

Paradoxalmente, assim, passou a existir uma categoria de trabalhadores a que são reconhecidos os direitos de sindicalização e de greve, mas que não possuem direito a negociar coletivamente. Como bem aponta Fernando Belfort, “os servidores públicos da Administração direta acabaram, na prática, sendo expurgados, através da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, de seus direitos constitucionais, na medida em que, não podendo exercer o direito de negociação, os seus sindicatos passaram a atuar exclusivamente como forma de pressão para a alteração da legislação.

Na mesma linha de negação dos direitos sindicais dos servidores públicos, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção n. 20, apreciando a auto-aplicabilidade do art. 37, VI da Constituição Federal, decidiu que "o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em consequência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição de lei complementar exigida pelo próprio texto da constituição" (MI n. 20, Relator Min. Celso de Mello,DJ de 22/11/96, p.45690).

As oscilações da doutrina e da jurisprudência sobre o direito de negociação coletiva e de greve dos servidores públicos não impediram que, no mundo da vida, eclodissem inúmeras greves de servidores publicos e que, na prática, houvesse negociação entre os entes públicos e os grevistas, ocorrendo na realidade o que é negado pelo ordenamento jurídico nacional.  Provavelmente, entre as primeiras negociações neste âmbito e após a Constituição de 1988 tenha ocorrido na cidade de São Paulo, ao tempo da Prefeita Luiza Erundina.

 

Ainda que vários projetos de lei tenham sido apresentados ao longo dos últimos anos, o Congresso Nacional deixou de editar lei a respeito, seja lei complementar, seja lei ordinária.

Ante esse verdadeiro clamor, finalmente, o STF - que já desde 1994 (data do julgamento), por ocasião da apreciação do Mandado de Injunção n. 20, já havia denunciado a omissão legislativa em regulamentar o direito de greve, porém sem avançar em colmar a lacuna legislativa  - revisando o posicionamento anterior, decidiu pela adoção da lei de greve do setor privado como regulamentação das greves do setor publico (Mandados de Injunção, números 670, 708 e 712).

 Há de se reconhecer o notável esforço do STF, já que a transposição das normas relativas ao direito de greve, previstas para os trabalhadores civis do setor privado, para o âmbito do serviço público não se faz de forma simples. Porém, a necessária cautela na adequação do direito aplicável a situações realmente distintas, não deve paralisar a operação analógica que reconhece que, guardadas as devidas particuliaridades de cada fenômeno, a greve no setor público não se mostra tão distinta da greve no setor privado, especialmente quando esta acontece nos chamados serviços essenciais, já que ambas ameaçam a continuidade da prestação de serviços inadiáveis à comunidade, não se justificando um tratamento essencialmente  distinto em situações análogas (permissão em um; proibição ou grave restrição em outro).

 

Referências bibliográficas:

 

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Referencias Normativas

 

Artigos 5º, parágrafo 1º, art. 5o, LV,  37, VI, art. 42 parágrafo 5º, 240, alíneas “d” e “e da Constituição

 

Lei n. 7.783/89

Lei 8.112/90

Decreto n. 1480/95

 

 

Referências Jurisprudenciais

 

STF - ADIN 492-1,

STF - Mandado de Injunção n. 20,

 

 

Referências Internacionais

 

Convenção n. 98, IV, da OIT

 

Convenção n. 151 da OIT (art. 8º)

 

Convenção  n.154 da OIT

 

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 8º, 1, d)



[1] O presente verbete foi elaborado a partir do texto dos mesmos autores “GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS E STF - O Direito de Greve dos Servidores Públicos após a decisão do Supremo Tribunal Federal”, publicado primeiramente, in  “Direito Coletivo do Trabalho”, coordenador Rodrigo Garcia Schwarz, São Paulo: Elsevier, 2010.