AS REFORMAS E O PODER JUDICIÁRIO

AS REFORMAS E O PODER JUDICIÁRIO

 

 

AS "MUDANÇAS" E O GOVERNO DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

 

A Nação assiste, entre atônita e conformada, a orquestração de um discurso mudancista sob a bandeira de "Reformas Já!", sem conseguir atentar claramente quais destas reformas seriam realmente necessárias, qual o sentido geral dessas mudanças e, principalmente, quem delas verdadeiramente se beneficia.

 

A expectativa por mudanças fundamentais em nosso País representa uma das mais caras esperanças do povo brasileiro e, em certo sentido, sempre foi e esteve latente, como o sonho não realizado da maioria, em todas os momentos mercantes da história nacional recente.  Não poderia ser diferente em um país em que as desigualdades sociais são tão profundas, em que a elite econômica é tão patrimonialista e nossa política tão marcada pelos interesses desta.  E assim o foi desde a luta pelas reformas de base, pelos direitos democráticos, pela anistia, pela Constituinte, pelas Diretas Já ou pela Reforma Agrária.

 

Esta expectativa de mudanças apontou sempre para a superação, mais ou menos rápida, do regime de "aparthaid" social em que vivemos, no aprofundamento da democracia representativa, pela democratização do Estado, pelo rápido crescimento econômico auto-sustentado e independente, pelo acesso soberano às riquezas naturais.  Tal discurso sempre sofreu o combate dos setores conservadores, ora apontando as insuficiências insuperáveis de nossa democracia, ora indicando a insustentabílidade geopolítica da proposta de um desenvolvimento nacional independente e soberano.

 

1  A apropriação do discurso reformista pela situação conservadora.  Assim, ironicamente, os mesmos políticos egressos do regime militar e que, no último instante, abandonaram a nau à deriva do Governo Figueiredo apoiando Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, constituíram a base de sustentação do governo Sarney, apoiaram Collor de Mello e se encontram, hoje, hegemonicamente no comando político do governo Femando Henrique.  Pode-se dizer, sem erro, que os propagandeadores das mudanças reformistas são os mesmos que se encontram no centro do poder no Brasil desde 1964, continuamente, talvez com um relativo e curto interregno durante o Governo ltamar Franco.

 

O conteúdo do Governo FHC - conseqüentemente, das mudanças que propõe - pode ser perfeitamente identificado após três anos de governo:

 

- na mesma linha do projeto Collor, o governo FHC elegeu o setor público como o grande culpado pelo desequilíbrio fiscal do Estado, promovendo um arrocho sem precedentes no salário do funcionalismo; estatais, algumas de grande lucratividade e de estratégica importância, foram privatizadas por valores ínfimos e, em geral, em troca de títulos de duvidosa valia; o arrocho fiscal imposto aos Municípios e aos Estados da Federação, atingiram em cheio as contas públicas destes entes, retirando-lhes recursos importantes destinados à melhoria da condição social das populações menos favorecidas, tudo em nome de um alegado ajuste fiscal que não passa de transferência disfarçada dos parcos recursos públicos para o setor privado, por conta do pagamento de uma dívida pública, social e moralmente, ilegítima, pois multiplicada várias vezes em razão de juros irreais e extorsivos; promoveu-se significativo sucateamento dos serviços sociais,

saúde e educação; as reformas constitucionais atingem os direitos

 

previdenciários da população e dos funcionários públicos, com conseqüências drásticas que ainda não podem ser perfeitamente mensuradas;

 

- o grande beneficiado do desmonte do setor público é o setor privado especialmente o estrangeiro, para quem é canalizado um impressionante volume de riquezas, seja em patrimônío público privatizado a preços subavaliados, seja pela abertura indiscriminada de concessões de serviços públicos ou setores da economia nacional sem qualquer contrapartida real assegurada, seja pela indiscriminada e abusiva isenção de impostos (abertamente através de subsídios ou disfarçadamente através da complacência com a sonegação) ou, finalmente, pelos mecanismos de financiamento das dívidas públicas, interna e externa, como antes já referimos;

 

- a abertura da economia nacional se faz pela destruição impiedosa das empresas brasileiras, em verdadeira situação de "dumping", sem atentar-se para as conseqüências graves que podem resultar em um potencial futuro de monopolização de setores inteiros da economia nacional por grandes grupos transnacionais;

 

- a agricultura tem sido descapitalizada a níveis alarmantes, penalizada pela condição de "âncora verde" do plano de estabilização econômica.  As importações sucessivas e a ausência de uma política agrícola, indicam que estas não são apenas uma contingência na regulação de preços, mas, no futuro, um elemento constante da política econômica voltada à globalização, em que o Brasil simplesmente abre mão de uma política de auto-sustentabilidade agrícola em favor de compromissos econômicos internacionais;

 

- o desemprego, como conseqüência inevitável da política de sobrevalorização cambial (que restringe as exportações), de juros altos (que jogam a economia para a recessão) e de abertura do comércio exterior (que termina por "importar' o emprego estrangeiro em desfavor do emprego nacional), não é visto como intolerável, mas, apenas um elemento desejável de um manejo regulatório macroeconômico.  Ao contrário de admitir que a essência neoliberal do plano de estabilização seja a causa do desemprego, o governo, com desfaçatez, pretende impingir a idéia de que o desemprego se reduzirá com a redução de encargos sociais e de salários, ou por meio da flexibilização de direitos trabalhistas;

 

- Apoiado na unanimidade da mídia, que simplesmente suprime a opinião dos adversários nos grandes meios de comunicação, e num leque de forças conservadores (cuja amplitude é inédita na história política do País), o governo, aproveitando a desarticulação da sociedade civil, tem atacado em diversas frentes, sempre no sentido de desmontagem dos direitos da cidadania, nas restrições à democracia, aos direitos adquiridos da população, de dificuldades no funcionamento dos partidos políticos.  O Presidente da República tem se definido como o anti-Getúlio Vargas e, na mesma linha do Presidente Sarney, tem apontado a Constituição democrática de 1988 como o principal obstáculo à governabilidade.

 

- Nessa linha, o relacionamento com os demais Poderes (Legislativo e Judiciário) tem sido tenso e, não raramente, marcado por crises institucionais provocadas pela prepotência do próprio Executivo, usurpador usual das funções dos demais Poderes.  Tal ocorre, exatamente, para fazer avançar um processo de concentração de poderes no Executivo, pelo abastardamento dos demais Poderes da República.  Assim, promove um rolo compressor para aprovação das reformas constitucionais, levando os expedientes do chamado "toma lá, dá cá" em níveis inimaginados até então.  Ao mesmo tempo em que empesta a vida pública nacional com a troca de cargos públicos, obras previstas no orçamento e concessões de rádio pela aprovação dos projetos de interesse do Governo, o

 

próprio Executivo não se importa com a divulgação de tais negociatas, o que serve ao propósito não explicitado de desmoralizar o Parlamento e os parlamentares.  Relativamente ao Judiciário, não fosse suficiente a progressiva redução de verbas na previsão orçamentada anual, estas ainda têm sido contingenciadas ao longo da execução do orçamento, deixando o Judiciário desarmado para enfrentar a grande demanda de ações judiciais, muitas delas provocadas pelo próprio Executivo.  Este, ademais, amiudemente tem procurado jogar contra ele a opinião pública, como no episódio da URV, assim como ameaça com o controle externo.  E não deve ser descuidado que a fragilização do Judiciário perante a opinião pública, apenas serve de combustível ao argumento da necessidade de reformar o Judiciário;

 

- Finalmente, o projeto FHC claramente pretende o continuísmo, ainda que em desrespeito aos mais elementares princípios democráticos e de moralidade administrativa, empenhando-se numa batalha de vida e morte pela reeleição.  O episódio recente da intervenção descarada do Governo na política interna de um partido político (PMDB), utilizando até mesmo recursos públicos para que este partido decidisse pelo apoio ao candidato oficial, como noticiado e afirmado por integrantes do próprio partido, demonstra que o Governo não mais reconhece limites éticos à sua atuação.

 

O conjunto do Projeto FHC se identifica quase totalmente com outras iniciativas que, simultaneamente, são apresentadas por outros Governos latino-americanos, no mesmo sentido e com os mesmos propósitos.  Pode-se, mesmo, suspeitar de uma origem comum de todas essas iniciativas, sempre chanceladas por organismos internacionais de cooperação, como o Banco Mundial e o FMI.

 

O PROJETO DE "MUDANÇAS- DE FHC E A SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA

 

Sem compreender claramente a impossibilidade de que, presentemente, sob a hegemonia conservadora, as mudanças atendam aos interesses populares, significativos setores da sociedade civil mostram-se vacilantes em lutar contra as reformas propostas pelo governo FHC, quando não contribuem equivocadamente para o prosseguimento do projeto de ajuste conservador e neoliberal.

 

 

O primeiro equívoco consiste em olvidar que a Constituição de 1988 foi resultado de um esforço importante da nacionalidade, ainda sob o impacto positivo da superação do autoritarismo, representando um pacto político e democrático, pela construção de uma nação soberana e vocacionada para o desenvolvimento.  Ainda que o Constituinte de 88 possa ter se equivocado num ou noutro ponto, a Constituição atual representa um marco de reconhecimento dos direitos da cidadania, de afirmação de nação soberana, de equilíbrio entre os Poderes da República e de garantia ao estado dos instrumentos eficientes para a promoção do desenvolvimento e de superação das desigualdades sociais.  Onde a Constituição falha, é justamente onde previu sua regulamentação, pois inexiste vontade política da elite para implementar a vontade constituinte.  Quando não foi escancaradamente clara e detalhista em suas formulações, abriu brechas para interpretações estapafúrdias dos que jamais se conformaram com seu espírito democrático, nacionalista e social.

 

Jurídica e disfarçadamente, o que pretende o Governo Federal é promover uma Reforma Ampla da Constituição Federal sem que o Congresso tenha poderes constituintes para tanto.  Na prática, isso importa em zerar o pacto político das forças que, juntas, promoveram a transição do autoritarismo militar para a democracia, criando uma hegemonia conservadora que representa, historicamente, a negação dos valores que geraram a Constituição de 1988.  A revanche conservadora, com métodos escusos que marcaram o regime militar, é assegurada por uma fachada, aparentemente insuspeita, de um ex-exilado, ex-sociólogo de esquerda e, certamente, ex-democrata convicto.

 

O "rolo compressor' do Congresso se apóia, reciprocamente, na mídia, sob o argumento pueril de que, em função de uma suposta ingovemabilidade - falaciosa inevitabilidade do processo de globalização e manipulada vontade popular -, QUALQUER proposta de mudança estrutural é bem-vinda, mesmo que esta não se produza pelos meios lícitos e transparentes do processo legislativo democrático.  Assim, TUDO, desde medidas provisórias, atropelos legislativos, compra de votos e incentivo à desobediência civil (como no caso do incentivo ao não cumprimento das normas legais pelo Ministro do Trabalho pelas empresas metalúrgicas de São Paulo), até absurdas pressões sobre o Judiciário, são apresentadas como medidas heróicas de modernização do País.

 

 

O direito sagrado de oposição (que, em última instância, representa a própria garantia ínstitucional contra o totalitarismo) é apresentado como intolerável exercício de egoísmo político motivado por interesses subalternos.  A obstrução parlamentar - instrumento democraticamente assegurado em todos os Parlamentos - ora é apresentado como desídia de parlamentares relapsos, ora como arma do radicalismo irracional.  Caminha-se, a passos largos, para a esterilização da força democrática do Parlamento, que se toma em simples chancelador das decisões do Executivo.

 

Como fruto de um certo desespero causado pela exclusão dos setores progressistas das discussões políticas, muitos tem optado pelo "propositivismo", ou seja, pela aceitação da legitimidade do processo de deliberação das mudanças em troca de uma suposta interferência nos rumos da discussão.

 

Ao aceitar tal discussão, no terreno dos reformistas, tais setores não percebem a armadilha de que serão presa:

 

- admitem a legitimidade do processo constituinte disfarçado, pelo qual subtrai-se o poder de um Congresso Constituinte Exclusivo, que seda o único competente e legítimo para modificar substancialmente o texto - e o espírito - da Constituição de 1988.

 

- aceitam a possibilidade de que, sob a hegemonia dos conservadores e dentro dos seus conhecidos métodos, ocorram alterações legislativas significativas, emprestando a todo o processo o prestígio político e ético que faltam a tais setores.

 

- ainda que inconscientemente, ajudam a traficar a ilusão à população de que, participando os progressistas, alguma mudança constitucional possa ser, em algum aspecto, positiva ou, pelo menos, pouco prejudicial aos interesses da maioria.  A experiência recente tem mostrado o profundo equívoco dessa idéia.  A participação dos setores populares na discussão das reformas constitucionais tem sido apresentada como o marco da "quebra das resistências" da sociedade e sinal claro da inevitabilidade das mudanças.  O episódio da negociação do líder sindical Vicentinho na Reforma da Previdência é significativo e exemplar.

 

O PROJETO DE "MUDANÇAS- E A POSTURA DAS ENTIDADES DE CLASSE

Dois exemplos específicos da magistratura podem ser apresentados:

a vacilação de nossa entidade nacional, a AMB, não se posícionando clara e prontamente contra o projeto de Súmula Vinculante e da Reforma do Judiciário como um todo, sem dúvida, contribuiu para a aprovação de projeto com tal teor pelo Senado Federal;

 

 

a postura equivocada da Anamatra quanto à Reforma Administrativa, praticamente de apoio tácito a um projeto de desmonte da máquina pública, ainda que, no bojo, contivesse a promessa de um reajustamento salarial aos magistrados.

 

 

Não pode o IX CONAMAT silenciar em momento'tão grave da vida brasileira, nem concordar com os métodos adotados pelos promotores das reformas em curso.  Ao contrário da vacilação e equívocos das entidades nacionais representativas dos juizes, deve firmar posição correta e coerente, negando apoio às reformas em curso até que seja, primeiro, implementado todo o programa prevista na Constituição de 1988, em especial os direitos sociais do art. 70, e depois, eleito e instalado um Congresso Constituinte exclusivo.

 

 

Nestes termos, propomos que o IX CONAMAT aprove o encaminhamento de moções contrárias a todas as reformas constitucionais em curso, a serem endereçadas a todos os parlamentares.

 

 

Curitiba, 23 de maio de 1998

 

 

(Tese escrita e apresentada pelos juizes da Amatra IV, Luiz Alberto Vargas e Paulo Luiz Schmidt)