Nuvem passageira

 

 

Introdução.

   

Em outro texto[1], procurou-se examinar as necessidades e, acima de tudo, as possibilidades dos juízes frente a uma sociedade cada vez mais complexa e plural. Insistíamos com a idéia de que a pluralidade de decisões não era um erro a ser imputado ao Judiciário, mas uma de suas mais importantes virtudes nos tempos atuais.

 

Já mais recentemente, em outro artigo[2], buscamos colocar em evidência que a prestação jurisdicional se faz através de sucessivos atos processuais, dos quais a sentença e o acórdão são apenas uma parte, ainda que importante. Do ponto de vista do cidadão, interessa o conjunto de atos que forma esse todo único, que é a prestação jurisdicional. Assim, cada vez mais relevante pensar-se as decisões judiciais como necessariamente interligadas entre si e mutuamente dependentes, sendo desejável buscar-se uma possível harmonia entre as decisões de primeira e segunda instâncias, o que somente é realizável quando se logre distinguir perfeitamente a função social que cada uma ocupa dentro do processo.

 

Ao tempo em que se escreveram tais artigos, havia, como tela de fundo, projetos que ameaçavam com a extinção ou o desmantelamento da Justiça do Trabalho.[3] Parece que, definitivamente, tais projetos foram arquivados e a Justiça do Trabalho permanecerá cumprindo sua missão, já mais que cinquentenária, inclusive com competência recentemente ampliada para exame de obrigações previdenciárias, além de prováveis outras novas como se verá adiante.

 

Entretanto, uma nova ameaça não mais se apresenta na forma de proposta de extinção, mas sim em esvaziamento do Judiciário Trabalhista, supostamente incapacitado para concorrer com as novas comissões de conciliação prévia. Nestas infundadas críticas, apresentadas pela propaganda governamental, até mesmo, em horários nobres das grandes redes televisivas, estas outras instâncias solucionariam as demandas trabalhistas em tempo muito menor que o de um processo judicial.

 

Assim, o mote do novo ataque ao Judiciário Trabalhista não é mais o da incerteza jurídica, nem um suposto incontrolado excesso de poder da primeira instância, mas agora o da morosidade das decisões judiciais. Antes de tudo, parece curioso falar-se em morosidade, quando dados oficiais indicam que, somente no ano de 2000, mais de um milhão e meio de processos foram solucionados.[4]

 

De qualquer forma, deve-se admitir que a demanda judicial excede em muito as possibilidades de resolução dos processos em tempo razoável, fato que deve ser atribuído à carência de juízes e de funcionários, bem como ao excessivo número de recursos.

 

Em relação a tais temas, deve-se destacar a atuação dos organismos de classe da magistratura trabalhista, que têm se empenhado em demonstrar à sociedade e às autoridades governamentais a necessidade de aparelhamento do Judiciário Trabalhista e do aumento significativo do número de juízes, bem como na luta pela aprovação de novas leis processuais, que tornem mais rápido o processo.

 

Não se pode esquecer que é direito do cidadão, constitucionalmente assegurado, o direito à ampla defesa com os meios e os recursos a ela inerentes[5], o que justifica a existência do duplo grau de jurisdição. A existência necessária de um órgão revisor - que forçosamente implica em tornar mais demorada a solução do litígio[6] -  deveria indicar, por si só, a conveniência de que todas as propostas de agilização do processo trabalhista tivessem em conta tornar cada vez mais eficiente o  trabalho da primeira e segunda instâncias, objetivo para o qual a obtenção de uma maior harmonia entre sentença e acórdão pode desempenhar um fato relevante.

 

Não se trata, como já se disse, de cercear a criação jurisprudencial a pretexto de uniformização. Trata-se, sim, de gerar mecanismos eficientes para canalizar toda a potencialidade criativa da primeira instância para uma sedimentação em segunda instância que, preservando tal pluralidade, ao mesmo tempo, se preste a uma unificação jurisprudencial, poupando tempo e esforço para os operadores jurídicos e servindo como parâmetro seguro para a sociedade. Com tal norte, apresentamos algumas idéias, iniciais ainda, que podem servir de incentivo, para um debate em torno do tema crucial do momento, qual seja, o de como tornar mais eficiente e rápida as decisões judiciais trabalhistas, sem sacrificar o pluralismo, a criatividade jurisprudencial e a independência funcional do juiz.

 

 

 

Propostas.

 

A seguir, em tópicos, apresentamos as  sugestões que seguem.

 

 

1. Ampliação da Comissão de Súmulas do TRT.

 

Sem qualquer intuito de crítica ao trabalho desempenhado até aqui pela comissão atual, parece altamente conveniente que o debate sobre a jurisprudência do Tribunal envolva todos os juízes da Região.[7] Assim, propomos a ampliação da comissão encarregada de propor novos enunciados da Súmula de Jurisprudência do TRT, para que nela se integrem magistrados do primeiro grau (juízes presidentes e juízes substitutos) para que o pensamento dos magistrados que diretamente entram em contato com a realidade trazida pela partes possa contribuir, com sua visão mais próxima do ponto de vista da sociedade, na uniformização jurisprudencial.

 

 

2. Realização de seminários semestrais para discussão da jurisprudência sumulada.

 

Nesta mesma linha, seria certamente um notável avanço que se realizassem, com periodicidade pelo menos semestral, seminário para discussão da jurisprudência sumulada, de forma que houvesse um rico intercâmbio entre os pontos de vistas dos juízes de primeira e segunda instâncias. Tais seminários, evidentemente, teriam caráter informativo, já que a independência do magistrado para decidir de acordo com sua livre convicção é inquestionável.[8] Nem mesmo a aprovação das súmulas dependeria diretamente destes Seminários, eis que atribuição do Órgão Especial do TRT, após propostas da Comissão ampliada antes referida.

 

 

3. Realização de melhor estudo e reflexão coletiva para evitar-se o elevado número de sentenças anuladas pela segunda instância e de processos extintos sem julgamento de mérito pela primeira instância.

 

Sem dúvida, uma das fontes de maior frustração de partes e advogados, presentemente, é o elevado número de processos que são extintos pela primeira instância, bem como de sentenças que são anuladas pela segunda instância.

 

Em qualquer dos casos, temos uma solução processual que não satisfaz à sociedade e que, assim, somente deveria ser adotada como último recurso.[9] O conflito persiste, pois a parte certamente renovará a ação ou aguardará que nova sentença seja prolatada. A decisão extintiva ou anulatória apenas posterga a solução real, contribuindo para o sentimento popular, muitas vezes injusto, que a intenção do juiz apenas foi a de ¨livrar-se do processo¨, ainda que ao custo de retardar a solução da lide.

 

Assim, parece-nos altamente conveniente que um amplo debate seja feito relativamente às causas que têm levado a esse excessivo número de processos extintos e de sentenças anuladas.

 

Além disso, em resguardo da imagem dos colegas que, por obediência a suas convicções, adotam tais decisões extintivas e anulatórias, sugerimos que:

 

- por resolução da Corregedoria, os processos extintos, não contem como processos solucionados para fins estatísticos nem sirvam para compensação na distribuição de processos nas comarcas com mais de uma Vara. Procedimento similar foi adotado pela 2a. Região, recentemente. [10]

 

- quanto às sentenças anuladas, propomos que, em caso de recurso contra a nova Sentença proferida, o processo seja, por distribuição dirigida, remetido para o mesmo relator que proferiu o Acórdão. Além de evitar-se perda de tempo (pois o relator já conhece a matéria), espanca-se, por esse meio, qualquer suspeita de que a anulação decorreu da pouca disposição do juiz relator em apreciar o mérito.

 

 

 

4. Em caso de acórdão que afaste preliminar de carência da ação por inexistência de vínculo empregatício, salvo caso excepcional, o Tribunal, desde logo, aprecie o mérito.

 

Trata-se, sem dúvida, de um dos motivos de maior demora dos processos. Parece difícil à sociedade compreender porque os juízes do Tribunal, ao reconhecerem a existência do vínculo empregatício, deixem de apreciar o mérito, remetendo tal decisão exatamente para o juiz que não compartilha do mesmo entendimento do segundo grau.

 

Por um lado, temos juízes que, modificam a decisão, mas declinam da competência, a qual inegavelmente possuem, para dar consequência jurídica imediata à decisão que adotaram.

 

Por outro lado, exige-se que um juiz que já decidiu contra a alegação do reclamante, prolate uma sentença que, em sua profunda convicção, o magistrado acredita seja injusta. Para o juiz de primeira instância, é uma violência; para as partes,  a certeza de uma sentença proferida  sem convicção.

 

A sugestão que fazemos, sem dúvida, contribuirá para a extinção de uma das principais fontes de atrito entre a primeira e a segunda instâncias. A relevância do tema já gerou debate para seu tratamento a nível constitucional.[11]  De qualquer modo, registre-se que não é unânime o entendimento da necessidade desta previsão constitucional, já existente em nossa lei, segundo alguns.

 

No momento em que se ultimava o presente estudo, foi promulgada a Lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001 alterando o Código de Processo Civil nos seguintes termos:

 

"Art. 515 ... § 3º. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento."

 

 

 

5. Reafirmação da tradicional divisão de papéis entre primeira e segunda instância: a matéria fática é, em geral, melhor apreciada pela primeira instância.

 

Trata-se de regra prática bastante conhecida e que retrata uma verdade insofismável: é no primeiro grau que se pode, efetivamente, melhor avaliar a prova, pelo contato direto com partes, testemunhas, peritos e pelo conhecimento da realidade local, que somente um juiz inserido na comunidade pode ter.

 

A idéia de que o conhecimento indireto da realidade através dos autos possa substituir ou superar o conhecimento direto pressupõe uma visão formalista e descompromissada com a realidade e, portanto, bastante equivocada. Recorde-se que um dos principais avanços das regras processuais, posteriores à Idade Média, foi, exatamente, a produção de provas diretamente perante o julgador.

 

Pode-se com segurança dizer que, tratando-se de matéria fática, a decisão do primeiro grau deve, a princípio, prevalecer, por aplicação de regra de bom senso e de confiança, ou seja, aquele que não estava presente aceita, até prova em contrário, como verdadeira a afirmação daquele juiz que tomou contato direto com o fato.

 

 

 

6. Fixação de um número mínimo mensal de sentenças e acórdãos.

 

A resposta que devemos à sociedade deve incluir uma ação prática coletiva, no sentido de superar definitivamente o número de sentenças e acórdãos pendentes. Assim, reiterando e ampliando proposta que já se apresentou[12], sugerimos que seja fixado um número mensal mínimo de acórdãos e sentenças para cada juiz, que sirva de parâmetro para o esforço individual em prol desta meta coletivamente fixada.

 

 

7. Defesa do acréscimo de competência para incluir matéria penal, revisão de multas administrativas, acidente do trabalho e todas controvérsias relativas a relação "de trabalho" e não apenas "de emprego".

 

Inexiste motivo razoável para que a matéria relativa a crimes contra organização do trabalho não esteja na competência da Justiça do Trabalho. Igualmente os crimes contra a administração da Justiça do Trabalho e os crimes contra a organização do trabalho, melhor poderiam ser apreciados nesta esfera.

 

Também já há proposta, salutar, dentro da Reforma do Judiciário, da ampliação da competência da Justiça do Trabalho nos casos de revisão de multas administrativas e para os litígios que versem sobre acidente do trabalho.

 

A utilização da expressão "de trabalho" e não "de emprego" no projeto já em exame perante o Senado Federal, além de acréscimo na competência, evita graves incoerências que haveria com a expressão de menor amplitude.

 

A ampliação de competência em tais matérias, sem dúvida, significará maior prestígio à Justiça do Trabalho, mas, especialmente, servirá precipuamente ao interesse social, pois questões, até hoje relegadas a segundo plano em outras esferas do Poder Judiciário, encontrarão um estuário natural nesta Justiça Especializada.

 

 

 

Conclusão.

 

Outros tantos temas merecem o debate mais aprofundado. Enumeramos, ainda, alguns mais urgentes, tais como, reaparelhamento humano, inclusive, das Secretarias das Varas do Trabalho, com efetivo reconhecimento das atividades fins da Justiça do Trabalho, e a definição mais clara, talvez já existente em lei, quanto aos critérios para convocações de Juízes para atuação em segundo grau.

 

Estes temas, certamente, melhor se prestam ao exame interno à magistratura, mas, de qualquer modo, dizem respeito a toda a sociedade, podendo ser analisados em instâncias tais como o Forum de Defesa da Justiça do Trabalho, experiência pioneira na Justiça do Trabalho, no Estado do Rio Grande do Sul.

 

Com estas sugestões acredita-se estar contribuindo para que a Justiça do Trabalho aperfeiçoe-se e responda às atuais exigências sociais. É razoável até mesmo alguma convicção de que quase superamos as tentativas mais obscuras da extinção.

 

De qualquer modo, toda prática social deixa algum aprendizado, seja para o bem de todos ou para o mal de muitos, diferentemente de uma nuvem passageira. Urge, pois, apreendermos e dar novos passos.

 

 

 

LUIZ ALBERTO DE VARGAS

RICARDO CARVALHO FRAGA

Juízes do Trabalho no Rio Grande do Sul



[1]Pluralidade e Unidade - Potencialidades Transformadoras do Direito” e “Radicalidade democrática, Estado e Poder Judiciário, Caminhos da participação popular”, destes autores, publicados no livro “Democracia e Direito do Trabalho, Editora LTr, ano 1995, Coordenador Luiz Alberto de Vargas, páginas 94 e 100 respectivamente.

 

 

[2] “Fatos e Jurisprudência – Reflexões Iniciais”, destes autores, publicado no livro “Direito do Trabalho Necessário”, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002, páginas 51. Este texto foi divulgado igualmente no Suplemento Trabalhista LTr, número 117, Revista do TRT da Quarta Região, número 31, 2000, página 71; Revista Síntese Trabalhista, número 123.

 

 

[3] Para citar alguns, os projetos de extinção da Justiça do Trabalho expressos pelo Deputado Hélio Bicudo, comentado por nós in Revista do TRT da Quarta Região, número 26, ano 1993, páginas 29 a 34 e o Relatório Aloísio Nunes Ferreira que sucedeu o do Deputado Jairo Carneiro e antecedeu o derradeiro na Câmara dos Deputados, da Deputada Zulaiê Cobra. Ainda "As reformas e o Poder Judiciário", com Paulo Luiz Schmidt, apresentada no Congresso Nacional dos Juízes do Trabalho (Conamat), em Curitiba, 1998.

 

 

 

 

[4]   Dados mais precisos podem ser obtidos no site www.tst.gov.br.

 

[5]  Artigo 5o, inciso LV da Constituição Federal

 

 

 

[6] Medite-se, por exemplo, que a inexistência de revisão tem sido apresentada como a grande vantagem da solução pela arbitragem, por exemplo. Não sem razão, o mesmo fato tem sido apontado como um grande fator de insegurança jurídica.

 

[7] No TRT da 4ª Região já existe esta Comissão.

[8]  Recente texto “Da Democratização da Jurisprudência” trata da relevância da “divulgação” da orientação jurisprudencial efetivamente dominante, de autoria do Juiz do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Urbano Ruiz, in “Boletim da AJD - Associação dos Juízes para a Democracia”, número 26, out/dez 2001, página 10.

 

[9]  A melhor doutrina aponta no sentido de se perceber o processo como instrumento e não como entrave.

 

 

[10]   Trata-se do Provimento CR-60/2001, de 31 de maio de 2001, do Juiz Corregedor Regional Gualdo Fórmica, acessável no site www.trt2.gov.br. Este Provimento está em vigência e é posterior ao mais genérico sobre as fraudes relativas às Comissões de Conciliação Prévia, o qual foi revogado pelo TST.

 

 

[11] Em sub relatório à Comissão de Reforma do Poder Judiciário, o Deputado Federal José Roberto Batochio propôs que:

 

"ao reformar decisão o tribunal deve resolver o mérito, mesmo que a decisão recorrida se tenha omitido sobre as alegações das partes ou seja nula, ressalvada a necessidade de produzir prova".

 A sugestão terminou por não ser adotada pela Relatora Deputada Federal Zulaiê Cobra, não sendo apreciada.

 

[12]   Encontro realizado em Ana Rech, em outubro de 2000, com debate e aprovação em Seminário de dia inteiro logo algumas semana após, na sede da AMATRA RS.