Panorama da flexibilização laboral

                                                Luiz Alberto de Vargas

Introdução :

 

Pretende-se apresentar, de maneira resumida e geral, um panorama das principais mudanças legislativas ocorridas no âmbito da regulação das relações individuais de trabalho, em cinco países da Europa (França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha) nos últimos anos.  Como é sabido, a Europa ocidental constitui berço e baluarte do chamado Estado de Bem Estar Social, que se constituiu, basicamente, sobre a promessa de integração dos trabalhadores à sociedade industrial por meio de dois instrumentos fundamentais : os serviços públicos e um estatuto do trabalho (constituído por normas de proteção mínima dentro da relação de trabalho - o Direito do Trabalho -) e a proteção  através do seguro social.

A análise jurídica dos câmbios legislativos que sucedem a chamada ¨crise da sociedade fordista¨  constatará que, apesar da evidente diversidade que cada país apresenta no desenvolvimento de suas políticas públicas, existe uma notável identidade de soluções encontradas, a ponto de podermos falar de características gerais, que revelam uma tendência de decréscimo dos níveis de proteção, sendo um pontos mais preocupantes o deslocamento de importante parcela dos contratos de trabalho para formas de trabalho menos protegidas, num processo de precarização laboral (também chamado como flexibilização laboral ou reestruturação produtiva).

Toma-se, como ponto de partida, a existência generalizada, de uma relação de trabalho típica, por tempo indefinido,  a tempo completo, legalmente protegida pela lei e por normas coletivas. Sobre tal relação típica se pretende mapear as modificações introduzidas pelas políticas públicas pós-anos setenta, que implicaram, basicamente, na no reconhecimento (e incentivo) de novas formas de trabalho denominadas atípicas, como o trabalho temporário, trabalho autônomo, trabalho a tempo parcial, etc.

Para tanto, seguimos o esquema de análise de JORGE MATOSO, que procura identificar a presença de novas formas de insegurança na relação de trabalho a descompromissos  (omissivos ou comissivos) do Estado em seu dever histórico de proteção ao assalariado. Se utiliza como principal fonte o estudo publicado pela Universidad Ramon Llull, em 1995, que reuniu especialistas de vários países europeus e que está publicado no livro ¨Crisis del Estado de bienestar y derecho social¨.

Por razões de espaço e tempo, concentramo-nos apenas nas modificações nas relações de trabalho, pondo de lado modificações igualmente importantes no âmbito da proteção social conferida pelas normas previdenciárias.

 

As novas inseguranças

 

Profundas mudanças legislativas ocorridas a partir da década de 70 alteraram profundamente os equilíbrios que ao longo do tempo constituíam a nota mais marcante dos chamados Estados de Bem Estar social. Estas mudanças implicaram em retrocessos nos níveis de proteção social e  também propiciaram a aparição das chamadas  “novas inseguranças¨ no mundo do trabalho. A tônica desse processo consiste em um retrocesso do Estado em sua funções regulatórias (de institucionalização de garantias legais em favor dos trabalhadores) e, assim, em um ¨retorno a livre disposição pelas partes  de suas condições contratuais¨ (recontractualización).[1]

Para exemplificar o fenômeno, restringimos a análise a apenas alguns países (Alemanha, França, Itália, Inglaterra e Espanha), mas, se pode, com certeza, afirmar que tal retrocesso representa uma tendência de caráter quase universal. Em todos os países analisados, se observa um notável incremento na insegurança nas relações de trabalho, que, por sua vez, é fonte de instabilidade social y política.

Conforme MATOSO[2], a insegurança no trabalho assume cinco aspectos principais : insegurança no mercado laboral, insegurança no emprego, insegurança na renda, insegurança na contratação e insegurança na representação do trabalho. Todas estas inseguranças se caracterizam por uma abdicação, omissiva ou comissiva, do Estado em suas funções protetivas do assalariado.

A insegurança no mercado laboral consiste na incerteza de pertencer ou não ao mercado de trabalho e é resultante do excesso de oferta de mão de obra, assim como do incremento das desigualdades frente ao desemprego.

O fenômeno do desemprego não é um produto da natureza, mas o efeito de determinadas políticas públicas se podem caracterizar como portadoras de um déficit de atuação estatal, pois permitem uma alto nível de desocupação como decorrência do abandono do pleno emprego como prioridade de governo.

Por outro lado, se pode também notar una crescente desigualdade no interior do desemprego, pois determinados setores por ele mais duramente atingidos (jovens, mulheres, idosos, trabalhadores menos qualificados), pois apresentam maiores dificuldades para ingressar ou retornar ao mercado de trabalho.

A insegurança no emprego se centra na introdução, em praticamente todos os países avançados, de facilidades para as demissões. Assim, em um processo de aproximação da legislação comunitária, se extinguiu a autorização administrativa para demissões individuais e se reduziram consideravelmente as possibilidades de controle judicial sobre os motivos dos empregadores para realizar as demissões. Como se sabe, a proteção contra a despedida imotivada é uma das peças-chave do sistema protetivo, uma vez que a instabilidade no emprego (e o risco de perder o emprego por mero exercício da vontade patronal) torna o empregado bastante mais vulnerável em sua relação com o empregador. Ademais, passou-se a admitir a contratação a título precário (eventuais ou temporais), passando esse coletivo um número percentual expressivo da massa assalariada (especialmente em Espanha). Houve, em praticamente todos os países, uma redução significativa dos postos de trabalho estáveis, ao mesmo tempo que proliferaram as modalidades chamadas ¨atípicas¨, em muitos casos, legalmente fomentadas por políticas públicas específicas, a pretexto de combater o desemprego : trabalho temporário, por tempo determinado, eventual, por tempo parcial, a domicílio, de aprendizagem, para estágio ou autônomo. Merece especial ênfase o aumento da terceirização e da contratação de trabalhadores autônomos, dois aspectos de um mesmo fenômeno de externalização dos custos e dos riscos da atividade empresarial.

Paralelamente, se observa uma jurisprudência cada vez mais restritiva no reconhecimento da existência da relação empregatícia. Acresça-se, ainda, o efeito  fracionador sobre o mundo do trabalho que implicam as tendências empresariais a desconcentração e ao fortalecimento do setor terciário. A adoção de políticas de fomento a pequenas empresas é outro fator de desproteção na relação de emprego. A título de resumo, se pode dizer que, sob a justificação de redução dos custos laborais, a política flexibilizadora/precarizadora optou resolutamente pela destruição do paradigma do trabalho fixo e a tempo completo, por meio da introdução de uma enorme gama de trabalhos atípicos y por crescentes facilidades para o empresário romper injustificadamente o contrato de trabalho.

A insegurança na renda é conseqüência das inseguranças anteriores que geram uma maior variabilidade e  instabilidade dos salários, que se tornam mais suscetíveis à situação econômica. Adotam-se sistemas flexíveis de pagamento, tornando os salários mais dependentes da situação de cada empresa e se assiste o retorno de antigas formas remuneratórias (como o salário por peça produzida).

Ao mesmo tempo, se desconectam os reajustes salariais de mecanismos indexatórios (custo de vida e/ou produtividade).  As políticas orientadas à moderação salarial responsabilizam os aumentos salariais por aumentos da inflação. Constata-se uma estagnação das contribuições social y fiscal das empresas, ao mesmo tempo em que ocorrem transferências de parte da carga aos trabalhadores. Mais uma vez aqui, mais que uma ¨imposição dos fatos¨, estamos diante de políticas deliberadas de transferência de renda em favor das empresas, de fragilização dos mecanismos de sustento das negociações coletivas centralizadas, de desmonte dos mecanismos legais  de reajuste indexados à inflação e de redução das contribuições sociais.

A insegurança na contratação se caracteriza por um notável desgaste da contratação coletiva em favor de uma maior individualização das condições de trabalho.

Aqui, a política de desmontagem dos sistemas de negociação centralizada leva a uma quebra de expectativas de um futuro mais estável por parte dos trabalhadores, sejam considerados individualmente seja considerados como integrantes de uma categoria profissional. Mais importante, representa  una quebra de um compromisso geral de preservação e ampliação de melhores condições de trabalho para todos, já que a desativação de um mecanismo solidário de extensão a categorias mais débeis das conquistas obtidas em negociações centralizadas por organizações sindicais nacionais.

A possibilidade de alteração unilateral das condições essenciais de trabalho a pretexto de permitir a reestruturação das empresas a novas exigências produtivas condicionadas por um mercado mais competitivo são una constante nas políticas de trabalho em todos países. Em troca de promessas de manutenção do emprego, se admite a negociação de jornada de trabalho e de salário. Os salários podem ser reduzidos e os limites à jornada de trabalho se tornam ¨flutuantes¨ - admite-se a contratação por jornada anual, divisão da jornada por dois ou mais empregados, trabalhos intermitentes, trabalho a tempo parcial não voluntário, etc.) ou evanescentes (como o contrato de ¨jornada zero¨ ou seja, a obrigação de permanecer em plantões, à disposição do empregador,  sem qualquer remuneração garantida).

As políticas de reestruturação produtiva tomas aspectos algo dramáticos quando, em momento de profunda crise, se admite, sob a forma de reconversão, profundas alterações produtivas, com redução drástica de pessoal, tudo com decisivo apoio estatal, incluída substancial aportação de recursos públicos.

Concomitantemente com o retorno de fórmulas de retribuição salarial  individualizada, se promove uma revalorização do poder de comando empresarial, com incentivos individualizados à  produtividade e à qualidade do trabalho prestado.

A insegurança na representação se verifica no debilitamento da organização dos trabalhadores, colocados na defensiva pelo processo conjunto de insegurança, com reflexo evidente na diminuição dos níveis de sindicalização.

 

As conseqüências das  políticas flexibilizatorias

 

Para este estudo, interessa mais a insegurança específica no emprego, em especial no que implica a proliferação de contratos atípicos e seu impacto sobre o mercado laboral. A conseqüência mais grave da insegurança no contrato de trabalho é a real  possibilidade de configuração de um mercado de trabalho dual e os riscos próprios de uma ¨sociedade dual criada por una divisão social articulada com a divisão do trabalho¨.[3] Ou, mais claramente, uma divisão dos trabalhadores entre os que possuem um estatuto convencional -que tende a substituir o estatuto legal - e os débeis que mantém somente um  ¨estatuto mínimo¨, afastado do contrato de trabalho e sustentado pelo Estado, em uma situação chamada por alguns como ¨balcanização do trabalho¨.

Esta situação, ao menos em Espanha, foi sobremaneira agravada pela reforma de 1984, que permitiu, através dos contratos temporários de fomento ao emprego, a contratação por tempo determinado mesmo em atividades permanentes.[4]

Em pormenorizado estudo sobre a segmentação do mercado laboral espanhol,  HUGUET ROIG conclui que este apresenta uma ¨clara estrutura dual ligada em grande medida a distinção temporários-fixos. A simples modificação da lei poderia não importar, em si mesma, una superação de tal dualidade, uma vez que o enfrentamento temporários-fixos poderia não ser mais que ¨una máscara que cubre una segmentación más profunda, que no podría ser atacada con una mera reforma de la normativa contractual¨.[5]

Esta dualidade é constatável mesmo no âmbito de uma mesma empresa, podendo conviver, lado a lado, trabalhadores fixos com trabalhadores temporários.

Dois aspectos de suas conclusões são particularmente relevantes :  a) aspectos como idade, nível educativo, sexo, estado civil ou comportamento de mobilidade são cruciais para pertencer a uma ou outra porção do mercado dualizado;  b) a desproporcional presença de jovens e mulheres com estudos superiores no segmento secundário (precário) ¨no es imputable a una mayor apreciación por las características de los puestos de ese segmento, pero apunta, por el contrario, a que se debe a la existencia de barreras en el acesso al segmento de mayores salarios¨.[6] 

A insegurança no trabalho atípico se caracteriza por sua precariedade, maior limitação de direitos vinculados ao contrato, menores possibilidades de progressão profissional, menor remuneração,  baixa qualificação, piores condições de trabalho, menores possibilidades de acesso a previdência social, comparativamente aos trabalhos típicos. E  possível, ainda, associá-lo a postos de trabalho de deficiente cobertura por convênios coletivos e à baixa taxa de sindicalização. O pequeno poder de mobilização e de pressão política dos trabalhadores situados nos grupos marginados na relação laboral é motivo pelo qual também sejam prejudicados na repartição de recursos públicos, especialmente previdenciários.[7]

Assim, como resumo, se pode dizer que, como a  maior parte das proteções está associada a uma forma específica de trabalho (trabalho por conta alheia) y   somente se aplicam a uma ¨relação típica de emprego¨[8], que exige um tempo mínimo de trabalho na empresa, estes são potencialmente excluídos de significativa parte do regime protetivo.

 

Conclusões :

1)  O nível de precarização laboral atingido chegou a um ponto de insuportabilidade social que explica uma clara tendência reversiva nos últimos anos. Nota-se, em todos os países europeus - e marcadamente na política da comunidade européia uma crescente preocupação com a criação de postos de trabalho de qualidade (estáveis e suficientemente remunerados) - e não mais a idéia simplista de que ¨criar qualquer emprego é melhor que nenhum...¨

2)  As duas tarefas mais urgentes, dado o risco de dualização social decorrente da dualização laboral, parecem resumir-se na ¨proposta Supiot¨: a) nenhum contrato sem estatuto, ou seja, todo trabalho realizado no mercado de trabalho deve inscrever-se em um sistema de solidariedade, quer dizer, deve ser portador de direitos e deveres frente a coletividade. Uma das preocupações centrais consiste em assegurar aos trabalhadores em modalidades atípicas direitos sociais equivalentes aos trabalhadores típicos. b)  nenhum estatuto sem saída, ou seja, garantir a mobilidade de um estatuto ao outro, de modo a evitar que o trabalhador fique encerrado em um deles. A formação profissional permanente é um dos pontos básicos, assim como uma especial atenção aos riscos de que a dualização do mercado laboral venha a penalizar coletivos específicos (como as mulheres), que podem ficar presas a determinadas modalidades de trabalho (como por exemplo, o trabalho a tempo parcial).

 

BIBLIOGRAFIA REFERIDA :

HUGUET ROIG, Ana. 1999. Segmentación en el mercado de trabajo español. Consejo Económico y Social, Madrid.

MALO OCAÑA, Miguel Ángel. 1999. Costes de despido y creación de empleo. Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales. Madrid.

MARZAL, Antonio (Ed). AAVV. 1997. Crisis del estado de bienestar y derecho social. J.M. Bosch - ESADE, Barcelona.

 

 



[1] ¨La des-regulación puede ser pensada como un proceso de re-contractualización en aquellas áreas de política de trabajo que cubría el Estado de Bienestar. Lógicamente, el régimen contractual es más función de la negociación y del poder del mercado, que de un régimen protector estatutario que incluye el derecho necesario. De lo que se deduce que, por si misma, la re-contractualización favorecerá a los que tienen ese poder, y discriminará a los que no lo tienen¨. (MÜCKENBERGER, Ulrich in MARZAL, 1997, p. 152).

[2] MATOSO, p. 77.

[3] SUPIOT, Alan in MARZAL, 1997, p.31.

[4] Conforme HUGUET ROIG, p. 121, ¨la sustitución del empleo fijo por empleo temporal se produjo de forma sistemática de 1984 hasta 1992, con independencia de la coyuntura cíclica. Sin embargo, a partir de ese año, la evolución de los trabajadores fijos y temporales parece acomodarse al tipo de respuesta cíclica que se presume en teoría. Bentolila y Dolado (1993) sugieren que la destrucción del empleo fijo puede racionalizarse considerando que las empresas, que al inicio del periodo recesivo que comienza en el tercer trimestre de 1990 disponían de liquidez suficiente, intentaban alcanzar su tasa de temporalidad deseada, por lo que utilizaron sus excedentes para hacer frente a los costes de despido de trabajadores fijos redundantes¨. A este respecto, MALO OCAÑA Y TOHARÍA CORTÉS, P. 128, aunque no resulta posible cuantificar, en el estado actual de conocimientos, qué parte de la temporalidad responde a una necesidad empresarial de puestos de trabajo inestables, consideran ¨probable que la generalización del uso de contratos temporales hay llevado a que algunas necesidades permanentes se estén cubriendo con trabajadores que tienen contratos temporales¨.

[5] HUGUET ROIG, p. 248.

[6] HUGUET ROIG, p. 249.

[7] MÜCKENBERGER, Ulrich in MARZAL, 1997, p. 151.

[8] ¨El modelo de referencia para la ¨relación estandarizada de empleo¨ es el empleo continuo, de larga duración, a pleno tiempo, en un centro de trabajo grande o al menos de tamaño medio, y que requiere un alto nivel de capacidades¨ (idem, p. 158).