O Poder Judiciário é o menos democrático dos poderes republicanos

JUDICIÁRIO E PARTICIPAÇÃO

 

 

O  Poder  Judiciário  é  o  menos  democrático  dos poderes  republicanos.  Como  já se  disse  em  trabalho  anterior ("Estado e Participação, Revista Jurisprudência Trabalhista HS, 112, pg. 36), com base  nos  estudos  coordenados por Ada  Pelegrini  Greenover  (In "Participação  e  Processo",  Ed. Rev. dos  Tribunais,  1988),  "o impacto  das  idéias  participacionistas  atinge  fundo  o   Poder Judiciário, particularmente vulnerável quanto à sua  legitimidade, uma  vez  que seus membros não são eleitos, mas  são  funcionários públicos que assumem condição de membros de um Poder de Estado sem o  beneplácito do voto popular. Se a representação  temporária  do mandatário  eleito  nos  Poderes  Executivos e    Legislativo  não satisfaz  exigindo estrita fiscalização e  permanente controle, que dizer do Pode Judiciário onde seus membros são vitalícios e   não estão sujeitos a  qualquer forma de controle externo ?"

 

Além disso, é precisa a crítica ao Poder Judiciário como  zona  de poder, fechada, separada da  sociedade,  porém  não  independente,  que  revela  má vontade  em  discutir  sua  efetiva democratização (in "Democratização da Justiça", AJUP).

 

O   distanciamento  do  Judiciário  dos   problemas sociais,   sua  ineficiência  e  morosidade  são  cada  vez   mais constatações empíricas que, por sua evidência, dispensam  qualquer demonstração. Entretanto, pouco se tem avançado quanto a propostas que  efetivamente  importem  em  significativa  reforma  do  Poder Judiciário.  Na  maior  parte  dos  casos,  ou  se  fala  em   sua "superação"  através  de  Conselhos  Comunitários  ou   Setoriais, através  da  eleição  direta de seus membros  ou  se  caminha  por propostas  radicais  de  "enquadramento"  do  Judiciário  ao   que presumivelmente seja a vontade popular.

 

Como exemplo das primeiras propostas, podemos citar duas,  apenas de forma exemplificativa:

 

 -   os  Conselhos  de  Fábrica   que,   integrados paritariamente  por empregados eleitos pela base e  representantes dos  empregadores,  substituiria  -  segundo  alguns  com   grande vantagem  -  a  Justiça do Trabalho.

- a ampliação do instituto da arbitragem que,   por sua proximidade com a comunidade, trariam soluções mais  criativas e mais adequadas às realidades locais.

 

Ambas  as  generosas  idéias, a par  de  suas  boas intenções, da forma proposta, na realidade atual, representam mais uma negação da prestação jurisdicional do Estado ao cidadão do que efetivamente uma democratização do acesso à Justiça.

 

Sobre a primeira proposta, transformada em  projeto de lei de autoria do deputado Victor Faccioni (PPR-RS), a  opinião majoritária dos operadores jurídicos trabalhistas é a de que  tais conselhos seriam facilmente manipulados pela parte mais forte  (no caso,  os  empresários)  que constituiriam  uma  "Justiçazinha  de quintal",  no  âmbito de suas próprias empresas,  eximindo-se  dos inconvenientes  de  ter de prestar contas à Justiça  do  Trabalho. Desconhece-se  a  enorme  desigualdade  das  partes  envolvidas  e superestima-se as possibilidades de negociação em uma área  "livre de tutela estatal".

 

Quanto aos árbitros, parece que a maior dificuldade de   torná-los  uma  realidade  consiste  precisamente  na   pouca funcionalidade  de um árbitro destituído da coercitividade.   Além disso,  é de se ponderar as dificuldades do reconhecimento  social  73 da  legitimidade  do  exercício  de tal  arbitragem.  O  motivo  é bastante  simples: a escolha de um árbitro será, antes de  tudo,um exercício de negociação onde, mais uma vez, a força de cada  parte envolvida  determinará  - não a escolha de um  juiz  razoavelmente imparcial  -  mas de um "representante orgânico" (no  sentido  que Bobbio  emprega o termo em "O Futuro da Democracia", pg.  50,  ed. Paz e Terra) mais ou menos vinculado ao parceiro mais forte.

 

 Assim,  temos propostas de democratização  que  não chegam  ao cerne do problema: se temos o monopólio da Justiça  nas mãos  do Estado - e parece que, pelo menos por  enquanto,  ninguém ainda  se  arriscou a propor a "privatização" da Justiça  -  serão eficientes  as propostas de "contornar" o caráter  autoritário  do atual  Poder Judiciário, pelo gradual afastamento/abrandamento  de suas  funções  -  sem enfrentar  diretamente  seu  núcleo  estatal autoritário?

 

No  segundo  ponto,  no  campo  das  propostas   de "enquadramento"  do  Poder  Judiciário  à  presumível  vontade  do legislador,  pode-se,  a  grosso  modo,  resumir   dois  tipos  de projetos:  os  que pretendem submeter o Poder Judiciário  a  algum tipo de controle externo  pela sociedade   e os que julgam  urgente a  criação  de  mecanismo de garantam  a  submissão  das  decisões judiciais à algo que seria a expressão da vontade do legislador.

 

Paradoxalmente,  ambas as propostas voltam-se,  por efeito  rebote,  contra as  próprias  finalidades  democratizantes pelas quais foram formuladas.

 

O   controle  externo,  que  deveria   garantir   a participação da sociedade na administração da Justiça, na prática,  em  sua forma mais "branda", torna-se apenas interno, um  controle corporativo,  que  aumenta  o controle  vertical,  das  instâncias inferiores pelas superiores (não se pode entender de outra  forma, por ex., o projeto Jobim de Conselho Nacional da Magistratura, com esmagadora  maioria de membros dos Tribunais Superiores);  na  sua forma  menos  suave,  importa apenas na  ampliação  dos  controles institucionais  sobre o Judiciário através dos outros  Poderes  de Estado.

 

 Contra as melhores reflexões sobre a construção  de um Judiciário como "centro de produção de direitos" que, superando o mito da neutralidade e do apoliticismo, institucionalizaria  uma "magistratura  socialmente comprometida e socialmente  controlada" (Maria Helena Sulzbach, "Controle externo do Judiciário",  Pejota, jornal  do  Sindijustra/RS,  set/93, pg. 8) ou  como  "agente  das mudanças  sociais,  não  por  uma  imposição  ética,  mas  por  um imperativo  inerente  à interação social dos  organismos  sociais" (Paulo  de Tarso Ramos Ribeiro, "Processo e Conflito", Revista  de Direito  Alternativo, n§1, 1992, pg. 80), o resultado  final  pela criação  de um "Controle Externo" perdeu quase que totalmente  sua característica "externa", restando apenas o "controle", no que  de pior havia na proposta, ou seja, a submissão política da atividade jurisdicional  a um órgão controlador representativo da cúpula  do Poder Judiciário.

 

 Já a idéia de submissão à vontade do legislador, em sua essência, implica em elevado grau de juspositivismo, bem  como de  crença  no mito da vontade unívoca do legislador.  Quando  tal equívoco não implica na maior submissão do Judiciário ao Executivo e  Legislativo,  certamente implica na  submissão  das  instâncias  73 inferiores   as  superiores.  Assiste-se,  no  bojo   da   revisão constitucional,    simultaneamente  um  duplo   reforçamento   dos controles institucionais não democráticos sobre a magistratura  de primeira   instância:  o  caráter  vinculativo  das   súmulas   de jurisprudência e a responsabilização pessoal do magistrado em caso de  interpretação  "contra  legem" (no sentido que  lhe  derem  os Tribunais  Superiores).  A  vítima  é  o  próprio  pluralismo  das decisões  judiciais,  que mais do que um  direito  individual  dos magistrados trata-se de uma garantia democrática da comunidade. Tantas   dificuldades   fazem-nos   pensar   se   a insuficiência de propostas mais efetivas de reforma do  Judiciário não  decorra talvez de uma visão algo esquemática que se  satisfaz com  formulações teóricas genéricas, que não contemplam  todas  as características do Judiciário , bem como do processo judiciário de decisão.

 

 Antes  de tudo, a crítica ao burocratismo  não  nos deve  fazer  deixar de ver que, em muitos casos,  a  burocracia  é eficiente  e  atinge as suas finalidades. No caso  do  Judiciário, citando Amilton Bueno de Carvalho, é incorreto pensar que não seja a vontade política a mais plausível explicação por que um processo trabalhista  demore um lustro, enquanto que um  processo  criminal não  demore  um  ano... A mesma Justiça morosa em  obrigar  o  réu trabalhista  a  satisfazer direitos sonegados de  seus  empregados torna-se  supersônica  quando trata-se de por na  cadeia  pequenos criminosos,  em sua maioria pretos,  pobres e de pouca  instrução. (Amilton Bueno de Carvalho, palestra no II Encontro de Direito  do Trabalho Alternativo, Florianópolis, março/94).

 

Assim,   o   burocratismo   do   Judiciário,    sua  morosidade  e  ineficiência,  não são neutros em  relação  à  luta política.  Considere-se, também, que, ao contrário do que  pode-se pensar  a  primeira vista, o "processo de decisão"  -  no  sentido utilizado  por  Paulo  de  Tarso  Ramos  Ribeiro,  ob.  cit.-   no Judiciário  é bastante mais "controlado" do que no Executivo e  no Legislativo.

 

 A  participação  obrigatória  de  advogados,   como representantes das partes interessadas na decisão, com poderes  de ampla  intervenção processualmente garantido; a exigência  de  que todas as decisões sejam fundamentadas; a obrigação de  publicidade dos  atos  judiciais, com intimação compulsória  e  inequívoca  de todas  as partes do processo; a proibição de decisões  de  ofício, "extra",  "ultra"  ou "citra petita", a rigorosa  padronização  do processo  sob pena de nulidade; a ampla possibilidade  de  recurso com processamento obrigatório, a institucionalização de mecanismos correicionais e, mesmo, a responsabilização pessoal dos agentes da decisão  em caso de dolo diferenciam-se enormemente dos  processos de  decisão no Executivo e, mesmo, no Legislativo. Ainda que  tais diferenças  resultem  mais do caráter individualista  do  processo judiciário  e menos de uma vocação democrática, o certo é que  não há termo de comparação entre o controle exercido sobre a  produção de  uma sentença e os controles sobre a produção de uma lei ou  de um decreto do Executivo.

 

 Três  definições  restritivas se impõe  a  respeito desse controle democrático sobre a produção judicial. Em  primeiro lugar, deve-se reconhecer que tal controle diminuí a medida que se eleva  a cada instância, de modo que se pode dizer que o  controle  73 sobre os órgãos superiores do Poder Judiciário é bem menos efetiva que  a que existe sobre os órgãos inferiores. Tal  acontece  pelas próprias  características da estrutura judiciária, mas  também  do processo judicial, que restringe mais a participação do advogado e das  partes  quanto  mais  alta é  a  instância  judicial.  Assim, paradoxalmente, as decisões judiciais mais inusitadas - tomando-se por  base  a  expectativa  social -  são  mais  encontradiças  nas instâncias  superiores,  de  onde se conclui que  a  ampliação  do controle  vertical, com maior submissão das instâncias  superiores sobre  as  inferiores, provavelmente não diminuirá  o  descompasso entre das decisões judiciárias e aos anseios da sociedade.

 

 Em segundo lugar, tenha-se presente que o  controle sobre  o  conteúdo  da produção judicial não  implica  o  controle administrativo sobre essa mesma produção. Assim, se o cidadão  tem razoável poder de influência sobre O QUE será decidido, pouco pode fazer  a  respeito  de QUANDO ou COMO essa  decisão  ocorrerá.  Os mecanismos  correicionais não parecem efetivos quando se trata  de sentenças  em atraso ou prazos judiciais não cumpridos. Em  parte, porque efetivamente há sobrecarga de trabalho dos juízos. De outro lado, porque as correições preocupam-se mais com a  homogeneização ideológica do que a melhoria da prestação jurisdicional.

 

Finalmente,  ainda é preciso esclarecer  que,quando se  fala do controle sobre a produção, entenda-se que se trata  do controle  exercido  pelo  cidadão-jurisdicionado  através  de  seu advogado.  O  advogado  também  é  partícipe  de  um  processo  de "invisibilização"  e  de redução ou ritualização do  conflito,  na medida  que nem sempre a relação advogado-cliente ajuda  a  tornar mais transparentes as relações do cidadão com o Poder  Judiciário. Assim,  trata-se  de um controle individual - e  não  coletivo  -, exercido exclusivamente por meio de um profissional especializado, o  que,  restringe  a  possibilidade  de  maior  envolvimento   da sociedade.  Não  se  esconda o sol com  a  peneira:  também  pouco interesse  tem  demonstrado  a sociedade em  embrenhar-se  com  os problemas áridos do Judiciário, certamente sendo muito mais  fácil a   crítica  global,  externa,  descompromissada   com   propostas parciais,   menos   espetaculares,  embora   mais   efetivas,   de democratização.

 

 Assim,  chegamos  aqui ao ponto crucial:  quais  os caminhos que levariam a uma maior democratização do Judiciário, se as  propostas globais (Controle externo,  conselhos  comunitários) não  se  mostram efetivas? Entendemos que, ainda que penoso e mais demorado, o processo  de democratização INTERNA  do Judiciário seja  a  grande questão a ser enfrentada.

 

 Como democratização interna, situa-se, por exemplo, a  iniciativa  de  criação,  no Rio Grande do  Sul,  de  um  Fórum Permanente  da  Justiça  do  Trabalho,  com  todas  as   entidades representativas  da comunidade judiciária trabalhista  (Advogados, Magistrados, Juízes Classistas, Funcionários e Peritos), onde  são discutidos problemas administrativos e elaboradas propostas comuns de melhoria dos serviços judiciários.

 

 Ressalte-se,  também,  algumas propostas  de  cunho democratizante,  algumas aprovadas em Encontros categoriais,  como no Congresso da AMATRA-RS:

 

- concurso  público  para  ingresso  em  todas  as  73 instâncias  (inclusive Tribunais Superiores), com  submissão  dos candidatos  aprovados  a  referendo popular  (José  Felipe  Ledur, "Perspectivas para a democratização do Poder Judiciário no Brasil, 28/8/92);

mandato  temporário  para todos  os  membros  de Tribunais Superiores (Paulo Orval Partichelli Rodrigues,  discurso de posse no TRT-4¦ Região, Revista do TRT-4a. Reg., 1990, pg. 393);

-         eleições diretas para os cargos de  direção  dos Tribunais  (tese aprovada no VI Encontro Regional dos  Magistrados do Trabalho da 4¦ Região, 1991);

-          eleição  dos  Ministros  do  Supremo   Tribunal Federal,  como  garantia da independência e da  postura  ética  do Poder  Judiciário  (tese  aprovada no VII  Encontro  Regional  dos Magistrados do Trabalho da 4a  Região, 1992);

-          participação de juízes, servidores, advogados  e membros  do  Ministério  Público  na  definição  das   prioridades orçamentárias  dos Tribunais (Proposta da AMATRA-IV  para  Revisão Constitucional)

-          fim da promoção por merecimento,  substituindo-a por nomeação entre lista tríplice constituída pelos três primeiros colocados  em  concurso  de provas e títulos  pelo  Presidente  da República (Proposta da AJURIS para Revisão Constitucional);

-          realização de referendo popular para  cada  juiz após  um  ano  em cada comarca onde estiver lotado,  sob  pena  de remoção  na primeira rejeição e desligamento da função na  segunda (Paulo Torelly, Boletim do Advogado Trabalhista, maio/93, pg. 5);

 

Assim, como conclusões, diríamos que:

 

-         a  crítica à  desfuncionalidade  do  Judiciário, ainda  que  justa,  é insuficiente, mormente  quando  transmite  a ilusão  de que o afastamento/abrandamento do  Judiciário  (Estado) (d)nas  relações sociais implicará necessariamente  sua  superação por uma organização social mais elevada;

-          uma  análise mais acurada  do  Poder  Judiciário revelará  que a insatisfação social com a atividade  jurisdicional dirige-se  menos  à atuação das instâncias inferiores  e  mais  às instâncias  superiores, sendo contraproducentes propostas, que  se pretendam populares, que resultem justamente numa maior  submissão daquelas a estas;

-          o desejável controle externo sobre o  Judiciário deve se limitar ao âmbito administrativo, onde justamente inexiste participação   democrática  da  cidadania,  sendo  inaceitável   a interferência  no  conteúdo da atividade jurisdicional  (como  por ex.,  súmulas jurisprudenciais vinculativas), seja por  constituir atentado contra a independência do Poder Judiciário, seja por  ser fator  de  restrição  ao direito dos cidadãos  à  ampla  discussão judicial;

-          a crítica ao Poder Judiciário não deve  obliterar a  responsabilidade  de toda a sociedade civil,  especialmente  de suas  entidades  representativas,  até  aqui  omissas  no   debate institucional pela reforma do Judiciário;

-          pouco se tem avançado em projetos de reforma  do Judiciário  pela  via de sua democratização  interna,  sendo  essa discussão   infelizmente   confundida   como   questão   meramente corporativa e desinteressante na perspectiva da cidadania.