Um diagnóstico real do atual estágio das relações  coletivas de trabalho no Brasil, a par das críticas que podem ser  feitas ao Poder Normativo da Justiça do Trabalho, devem  considerar também os seguintes aspectos positivos, sob pena de  traçarmos um quadro unilateral e falso da realidade, o que, sem  dúvida, não contribuirá para a adoção de propostas conseqüentes  que efetivamente melhorem - e não agravem - a sem dúvida difícil,  quase insuportável, situação dos trabalhadores brasileiros:

 

1.     Embora seja sempre possível a livre contratação  entre as partes ou a adoção de mecanismos alternativos de  composição (como a arbitragem privada), a utilização destas formas  é praticamente inexpressiva. Mesmo entre as poucas categorias que  utilizam a autocomposição - honrosa exceção feita a algumas  categorias de ponta, como metalúrgicos do ABC e São Paulo e  bancários - as conquistas obtidas por esta livre negociação não  discrepam significativamente do que tais categorias obteriam em  dissídio coletivo. Mesmo assim, é um ponto a considerar se tais  conquistas - ainda que pequenas - seriam possíveis se tais  categorias - ao contrário do que hoje sucede - partissem de um  "patamar zero", ou seja, se previamente ao início das negociações,  não tivessem um piso de direitos mínimos previstos em lei ou a  quase certeza de manterem algumas conquistas obtidas em dissídios  anteriores caso optem pelo via do Poder Normativo.

 

2. O horizonte de um novo sistema de relações  coletivas não pode tomar como parâmetro a realidade da Europa de  algumas décadas quando, fruto de desenvolvimento econômico  acelerado, viabilizaram-se as melhores condições para a  implementação de grandes contratos coletivos, de âmbito nacional,  com significativos ganhos para a classe trabalhadora. É preciso  considerar devidamente as significativas diferenças econômicas  entre a Europa de então e o Brasil de hoje, já que, mesmo em  países desenvolvidos, a atualidade é bem distinta, de crescimento  moderado, setorial e com manutenção de altos níveis de desemprego.

 

Assim, a melhor remuneração do trabalhador europeu  não decorre do contrato coletivo, mas do surto de desenvolvimento  econômico de que beneficiou-se a Europa há algumas décadas. Tanto  é assim que, nessa mesma Europa, já há alguns anos em crescimento  apenas moderado, assiste-se ao aumento considerável do desemprego,  à flexibilização dos direitos sociais, à precarização do emprego e  à redução de salário, instrumentalizando-se tais recuos  trabalhistas na forma também de acordos intersindicais.

 

3. Do ponto de vista econômico, é preciso  reconhecer que a experiência do Poder Normativo tem representado  um importante acervo de direitos aos trabalhadores, sendo de se  citar entre eles a gratificação semestral dos bancários,  adicionais diferenciados de horas extras, aviso prévio  proporcional, etc. É de se considerar, ainda, que o Poder  Normativo tem balizado e antecipado importantes conquistas hoje  consolidadas em lei, como a estabilidade gestante, a estabilidade  acidentária, o adicional de férias, o adicional de horas extras de  50%. Além disso, muito antes da garantia legal da reposição  automática dos salários nos níveis da inflação passada, a Justiça  do Trabalho pacificamente sempre garantiu, no mínimo, as perdas  salariais, acrescendo alguns percentuais de produtividade. Mesmo  agora, em que tal garantia não mais é integral, tem sido o Poder  Normativo que tem assegurado aos trabalhadores tal reposição,  motivo pelo qual a Justiça do Trabalho tem sido contemplada com  explícitas demonstrações de inconformidade por parte de sucessivos  governos federais, que a acusam de atrapalhar seus esforços de  estabilização da economia. Nesse sentido, é preciso também  reconhecer que o Poder Normativo já estava - e está - concedendo  ao geral das categorias de trabalhadores reajustes salariais  superiores aos previstos pela lei salarial recentemente aprovada.

 

4. As propostas de extinção do Poder Normativo da  Justiça do Trabalho devem ser medidas em todas as suas  conseqüências, sob pena de fanfarronice ou irresponsabilidade.  Assim, é preciso dizer com franqueza aos trabalhadores -  especialmente aos das categorias mais fracas ou menos organizadas  - que não será possível em um primeiro momento  (para muitos,  aliáis, em momento algum) assegurar, em negociação direta,  o  mesmo patamar de direitos hoje assegurado pelo Poder Normativo. É  preciso ter a sinceridade de afirmar que muitos perderão muito, já  que, no contexto de uma economia de Terceiro Mundo em recessão  prolongada, somente por algum delírio surrealista pode-se cogitar  de obter, em contrato coletivo, um patamar nacional de direitos  superior ao que hoje existe através da utilização do Poder  Normativo.

 

5. O Poder Normativo, além disso, tem servido para  disseminar, no âmbito inter-categorial, direitos e conquistas  salariais obtidas por categorias mais organizadas. Assim,por  exemplo, normalmente, os comerciários de todo o estado do Rio  Grande do Sul terminam por conquistar os mesmos pisos e direitos  previstos no dissídio dos comerciários de Pelotas e Porto Alegre,  ainda que, nas demais cidades, as categorias não estejam tão  organizadas, nem tenham a mesma tradição de luta. Aliás, esta tem  sido uma das queixas mais sentidas dos meios empresariais  relativamente ao Poder Normativo.

 

6. Finalmente, é preciso considerar que o Poder  Normativo tem servido para uma melhor visualização e  universalização do conflito coletivo do trabalho, bem como da  promoção da cidadania do trabalhador a partir da classe - e não de  uma minoria de assalariados, como leciona Tarso Gerno ("Em defesa  do poder normativo e da reforma do estado" in "Perspectivas do  Direito do Trabalho", vários autores, Livraria do Advogado, 1993).  Segundo Tarso, "Retirar o Estado desta relação global pela  supressão do Poder Normativo da Justiça do Trabalho é distensionar  a relação dos trabalhadores com o Estado, logo excluir o Estado de  sua função diretiva (que deve ser voltada para garantir a provisão  da existência) e retirar o Estado da função de promover novas  condições para o exercício da liberdade, da igualdade e da  participação social; é isolar os trabalhadores, sem capacidade de  barganha, dos conflitos das fontes modernas da sociedade e  promovê-los a situações de maior desigualdade intraclasse e de um  menoridade ainda mais profunda; é dar ao Estado uma função  meramente repressivo-sancionatória, teorizada pela tradição  libera, vendo o Estado como Estado meramente garantista".

O fim do Poder Normativo, além disso, promoverá uma  transferência intraclasse (das categorias mais fracas para as mais  fortes) da limitada renda nacional destinada a remuração do  trabalho, agravando a desigualdade social e os desequilíbros  regionais.

 

Assim, na prática, a idéia do contrato coletivo do  trabalho caminha na direção inversa do desejado, pois seu  pressuposto básico é o do afastamento do Estado das relações de  trabalho, que passam a se reger pelos normas contratuais, ainda  que desse afastamento resultem prejuízos à parte economicamente  mais fraca, no caso, os trabalhadores. Ao invés de exigir-se do  Estado maior comprometimento com a superação das injustiças  sociais, advoga-se, ao contrário, que este volte as costas ao  conflito social, lavando as mãos quanto aos resultados da "livre  negociação" entre partes absurdamente desiguais. Na prática,  significa que os trabalhadores devem contar com "suas próprias  forças" para conseguir algum ganho salarial. Entenda-se o exato  sentido da expressão "próprias forças": com limitado direito de  greve, sob o impacto da profunda recessão, que se prolonga por  mais de dez anos, sob a pressão do desemprego, os trabalhadores  brasileiros - como já fizeram os trabalhadores europeus,  americanos e asiáticos - terão a fabulosa opção de aceitarem  reduções significativa de seus ganhos em troca da não ampliação do  desemprego. Essa é a essência da modernidade do neoliberalismo no  âmbito das relações de trabalho.

 

O poder normativo da Justiça do Trabalho somente  entra em ação quando provocado pelas partes, ou seja, todo o  sindicato de trabalhador tem o direito de NÃO PROCURAR A JUSTIÇA  DO TRABALHO, simplesmente optando por não ajuizar dissídio e por  buscar um entendimento direto com os patrões. Mesmo assim, o poder  normativo subsiste no país, exatamente porque ainda representa uma  das mais eficientes formas dos trabalhadores obterem, em primeiro  lugar, a própria negociação (já que a classe patronal normalmente  se obstina em não negociar); em segundo lugar, a manutenção de  históricas conquistas normativas (como a gratificação semestral  para os bancários, por exemplo); finalmente, mesmo significativas  conquistas salariais acima dos patamares legais (como a reposição  mensal, por exemplo), apesar de todo o conservadorismo que tem  dominado os julgamentos de dissídios coletivos pelo Judiciário  Trabalhista nos últimos tempos.