JUSTIÇA DO TRABALHO, CONTRATO COLETIVO E PODER NORMATIVO[1]

Luiz Alberto de Vargas[2]

Pedro Maurício Machado[3]

 

Não é possível, em espaço tão exíguo, abordar,  ainda que a vôo de pássaro, todas as implicações da proposta de  adoção do contrato coletivo de trabalho em substituição ao modelo  atual, de arbitragem judicial dos conflitos coletivos.

Muito se tem escrito em análises comparativas do  modelo brasileiro com as formas de autocomposição vigentes na  Europa e nos Estados Unidos, a respeito das origens  corporativistas de nossa estrutura sindical e negocial e sobre  suas expressas intenções de domesticação dos sindicatos, etc.  Parece ter, entretanto, escapado de nossos comentaristas um  curioso aspecto recente que tem preocupado os doutrinadores  europeus: um processo de crescente "legalização" do direito  trabalhista - até então predominantemente intersindical - como  decorrência de um reconhecimento tácito de que os mecanismos de   autocomposição mostra-se insuficiente para garantir direitos  mínimos aos trabalhadores europeus, cada vez mais pressionados  pelo desemprego decorrente da recessão, da automação e da feroz  concorrência industrial japonesa;  pela mão-de-obra imigrante  clandestina; pelo esvaziamento dos sindicatos obreiros, que, dia a  dia, perdem associados. Em realidade, tem-se assistido um processo  contínua perda dos padrões de bem-estar que caracterizaram os  trabalhadores europeus  - e que marcaram, por décadas,  uma ilusão  social-democrata de avanço contínuo e inevitável dos direitos dos  trabalhadores sob o Estado capitalista - através da  "flexibilização" de direitos, de liquidação de sistemas de seguro  social, de redução de níveis salariais, etc. Ainda que não se  possa comparar tais retrocessos à política liquidatória  avassaladora que vivenciam os trabalhadores do Terceiro Mundo  (como, por ex., chilenos, venezuelanos e argentinos), tal fato  deveria ser suficiente para que nossos comentaristas repensassem a  associação algo mecânica que muitos fazem entre autocomposição e  avanço dos direitos sociais.

O que se propõe,entretanto, aqui é questionar  alguns pressupostos da teoria da autocomposição, que, apresentados  como postulados inquestionáveis, estão longe de serem efetivamente  consensuais.

O primeiro deles é a idéia de que o autoregramento  das condições de trabalhos diretamente pelos trabalhadores e  empresários, sem a presença do Estado seja um aperfeiçoamento  democrático. Muito pelo contrário, Norberto Bobbio (in "O futuro  da democracia - em defesa das regras do jogo", Ed. Paz e Terra,  1992) apresenta a concertação direta entre trabalhadores e  empresários como sendo um exemplo típico do chamado  "neocorporativismo" que ameaça a representação política (que  persegue os interesses da nação), superada pela chamada  representação dos interesses (que persegue os interesse privados).

Segundo Bobbio,"tal sistema é caracterizado por uma  relação triagular na qual o governo, idealmente representante dos  interesses nacionais, intervém unicamente como mediador entre as  partes sociais e, no máximo, como garante (geralmente impotente)  do cumprimento do acordo. Aqueles que elaboraram, há cerca de dez  anos, este modelo - que hoje ocupa o centro do debate sobre as  "transformações" da democracia - definiram a sociedade  neocorporativa como uma forma de solução dos conflitos sociais que  se vale de um procedimento (o do acordo entre grandes  organizações) que nada tem a ver com a representação política e é,  ao contrário, uma expressão típica de representação dos  interesses" (ob. cit. pg. 25). Assim, tal concertação direta não  se caracteriza como uma ampliação do espaço político, mas um  avanço dos interesses particulares.

Outro ponto que merece destaque é o da pretensa  ineficiência do Estado e o suposto consenso a respeito da   conveniência da redução do seu aparato burocrático. Assim, no caso  dos conflitos do trabalho, aparentemente a Justiça é ineficiente e  perdulária. Ainda que bastante questionável tal acusação de  ineficiência e ainda menos compreensível que se tabele em  cruzeiros (ou dólares) a manutenção da possibilidade de Justiça em  uma sociedade, é preciso que se pense a respeito de uma certa  compulsão em exigir o afastamento do Estado de amplos setores da  vida social - e conseqüentemente a redução de seu aparato  burocrático. Na contramão das idéias neoliberais de "Estado  mínimo", o mesmo Bobbio lembra que "hoje o desmantelamento do  estado de serviços - estado este que exigiu um aparato burocrático  até agora jamais conhecido - esconde o propósito, não digo de  desmantelar, mas de reduzir a limites bem circunscritos o poder  democrático. Que democratização e burocratização caminham no mesmo  passo é algo evidente, como de resto havia já observado Max Weber.  Quando os proprietários eram os únicos que tinham direito de voto,  era natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas  uma função primária: a proteção da propriedade. (...) Quando o  direito de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos  que nada tinham, aos que tinham como propriedade somente a força  de trabalho, a conseqüência foi que se começou a exigir do estado  a proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais  contra as doenças e a velhice, providências em favor da  maternidade, casas a preços populares, etc. Assim aconteceu que o  estado de serviços, o estado social, foi, agrade ou não, a  resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática  no sentido pleno da palavra" (ob. cit. pg. 35).

Um terceiro aspecto, apresentado como quase  unaniminidade, é o de que as categorias mais organizadas, pela  autocomposição - e, assim, pelo seu desatrelamento de um certo  padrão normativo aplicável ao conjunto das categorias  profissionais - obterão conquistas mais significativas, o que, em  última instância, beneficiará também as categorias menos  organizadas pelo elevação dos patamares da contratação coletiva. A  falsidade de tal argumento foi bem demonstrada por Tarso Genro, em  seu artigo "Teoria Crítica da Autocomposição" (Rev. Anamatra nº  13, set/91, pg. 61), onde demonstra que, sendo o produto social  que remunera o trabalho limitado, institui-se uma concorrência  interna não declarada entre as próprias categorias de  trabalhadores pela apropriação dessa parcela. Assim, em caso de  convenções coletivas em setores mais modernos e desenvolvidos da  economia, diretamente entre empregados e empregadores, sem a  presença do Estado e "de costas" para o resto da sociedade, Tarso  analisa os riscos de apropriação "privada" por esses  trabalhadores, através de uma relação corporativa, de parte  significativa do que foi destinado, pelo conjunto da sociedade,  para remunerar globalmente a força de trabalho, numa verdadeira  transferência interna de renda entre os próprios trabalhadores". E  mais adiante, observa que "Essa "retirada" do Estado (dos  processos de conflitos coletivos do trabalho) significa levar para  o plano do Direito Coletivo do Trabalho a aspiração mais cara do  neoliberalismo, que se expressa no debilitamento das funções  universalizantes do Estado para destruir os fundamentos do Direito  do Trabalho e submeter a relação de trabalho, sem qualquer  mediação, às mesmas leis do movimento da mercadoria" (ob. cit.)

Aqui, ainda com Tarso Genro, é de se questionar  outro aparente consenso entre os que preconizam um modelo de  contratação baseado exclusivamente em instrumentos de  autocomposição. O fim da intervenção do Estado no processo  negocial seria parte de uma estratégia de emancipação do conjunto  dos trabalhadores brasileiros, inclusive no rumo da transformação  do Estado brasileiro. Estratégia equivocada, pois, conforme Tarso  "Com a extinção do Poder Normativo, teremos no Brasil um movimento  de categorialização das regras e, ainda, de acantonamento da  produção da regra no âmbito da empresa e o que deveria ser  conquista global dos trabalhadores será conquista de um pequeno  grupo de trabalhadores dos pólos mais modernos da atividade  econômica. Trata-se, portanto, de verificar qual a forma mais  adequada de promoção da cidadania do trabalhador a partir da  classe, e não de uma minoria de assalariados. Para isso - é  evidente, é preciso reformar o Estado, que passa por uma profunda  reforma do Judiciário (eficácia, rapidez, autonomia política,  controle da sociedade sobre ele) e concomitantemente passa por  promover uma tendência à igualdade, num país concreto e numa  sociedade concreta (...) As alegações de que o Estado é arcaico e  que a Justiça do Trabalho é conservadora, demorada e subordinada  às influências do Poder Econômico, ao invés de amparar a  desvinculação da sociedade das questões do Estado, da sua reforma  necessária e do fortalecimento da cidadania (que só se expressa  como universalidade pela mediação do Estado) reforça a necessidade  do Poder Normativo, porque ele socializa a problemática do Estado  como problemática de toda a classe trabalhadora. Isso não  significa, na nossa opinião, proibir ou desestimular a negociação  e a autocomposição, mas significa permitir que, pelo Poder  Normativo, as próprias conquistas categoriais tenham oportunidade  de universalizar-se, e a própria autocomposição encontro o limite  do interesse público, obstando o corporativismo e o cartorialismo,  inclusive o corporativismo obreiro do colarinho branco. A  tendência a ser estimulada é que os trabalhadores se vejam cada  vez mais como classe com responsabilidade social, apta para  reformar e participar da gestão do Estado, o que é incompatível  com o espírito corporativo. Este, ao invés de pressionar para um  política econômica e social do Estado - propondo a classe como ser  político universal - fragmenta-se em demandas corporativas, que só  se relacionam com o conjunto da sociedade de maneira oportunista,  em momentos especiais, abandonando a maioria - obtidas as suas  vantagens categoriais - a sua própria e miserável sorte". ("Em  defesa do poder normativo e da reforma do Estado" in "Perspectivas  do Direito do Trabalho", obra coletiva, Livraria do Advogado,  1993, pg. 120).

Inevitável que se cite, na mesma obra, as palavras  de Ricardo Carvalho Fraga, sobre o mesmo ponto: "Não sonhamos com  uma sociedade em que apenas alguns tenham melhores condições de  trabalho. Tampouco acreditamos que o avanço das relações sociais  dependa exclusivamente do desenvolvimento econômico. Não  acreditamos, nem mesmo, que o aperfeiçoamento da sociedade seja  alcançado através unicamente dos embates sociais limitados à  realidade de cada setor da economia" (ob. cit. pg. 124).

Na esteira desse pensamento, aborda-se outra  afirmação pouco refletida e que, muitas vezes, toma-se como uma  verdade simples: a de que o fim do Poder Normativo haverá de  fortalecer o movimento sindical. Na prática, os riscos de  enfraquecimento - ao invés de fortalecimento - são bastante  sérios, sendo de se citar, pelo menos, três razões. A primeira, a  quebra da unidade do movimento sindical como decorrência lógica do  desatrelamento das categorias mais fortes, antes referido. O  segundo motivo é a questão muito prática - mas essencial - de  financiamento das entidades sindicais, hoje sabidamente escorado  na contribuição sindical obrigatória e na contribuição  assistencial prevista em dissídios coletivos. O possível próximo  fim da contribuição obrigatória e a incerteza da manutenção da  assistencial (a partir do fim do Poder Normativo sujeita à  negociação coletiva ou à norma legal específica) implica em  preocupações com a própria sobrevivência econômica dos Sindicatos,  potencialmente sujeitos, do dia para a noite, a verem-se reduzidos  aos parcos ingressos obtidos com as mensalidades associativas. O  terceiro ponto é o de cumprimento das normas coletivas pactuadas.  A não ser que se mudem conceitos e normas legais, permanecerão as  restrições ao ajuizamento de ações de cumprimento de convenções  coletivas, fato que não é de somenos importância, mas que,  inclusive, explica em boa parte o desinteresse dos sindicatos de  trabalhadores por acordos e convenções coletivas fora do âmbito do  Poder Normativo. A idéia corrente de que o cumprimento do contrato  coletivo possa ficar solucionado pela simples criação de comissões  paritárias é aparentemente ingênua, por desconhecer a natureza  bastante atrasada e autoritária de nossas relações de trabalho,  sendo nosso empresariado muito avesso a interferências "estranhas"  no âmbito de "sua" empresa. Ainda por considerável tempo, os  conflitos individuais do trabalho serão resolvidos precipuamente  pelo Estado.

Por fim, uma última palavra sobre o contrato  coletivo como parte de uma política trabalhista adequada a nossas  necessidades atuais. Mais uma vez, contra uma opinião geral, a  deflagração sobre o contrato coletivo de trabalho, nas condições  do Brasil de hoje, é um equívoco político. Às vésperas de uma  revisão constitucional que setores oligárquicos pretendem ampla  justamente para liquidar as conquistas sociais contidas na  Constituição, a CUT propõe uma pauta de discussão que desvia  atenções que deveriam estar concentradas na pressão sobre o  Congresso Nacional, pela manutenção do art. 7º da C.F., pela  ampliação garantia do direito de greve, pela Reforma Agrária, pela  manutenção do patrimônio estatal brasileiro, pela não aprovação da  Lei de Marcas e Patentes, por uma política salarial com  reajustamentos mensais.

Enfim, são esses os questionamentos que, no  propósito de contribuir para o debate, pretendia trazer à  consideração dos que se preocupam no aperfeiçoamento de nossas  instituições democráticas.

 



[1] Síntese única do painel “Justiça do Trabalho, Contrato coletivo e Poder Normativo”, apresentado na Jornada de Estudos sobre Contrato Coletivo de Trabalho, em Pelotas, RS, em 13 de abril de 1992.

[2] Luiz Alberto de Vargas é Juiz do Trabalho, Presidente da 2a.Junta de Conciliação e Julgamento do Rio Grande – RS e representou a AMATRA IV – Associação dos Magistrados do Trabalho da 4a. Região.

[3] Pedro Maurício Machado, advogado em Porto Alegre, é Vice-Presidente da AGETRA – Associação Gaúcha dos Advogados Trabalhistas e Secretário da ABRAT – Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas, entidades que representou.