PODER NORMATIVO

(por Ricardo Carvalho Fraga e Luiz Alberto de Vargas)

 

Pode-se definir como sendo a competência dos Tribunais do Trabalho para estabelecer normas e condições, por sentença, em dissídios coletivos, visando à sua solução.

O chamado Poder Normativo consiste em uma modalidade peculiar de heterocomposição dos conflitos coletivos (quando o conflito é solucionado através de intervenção de agente exterior à relação conflitiva original), pois, conforme Maurício  Godinho Delgado, “há o exercício coercitivo pelo agente exterior ao conflito original”.

De fato, ainda que outros  sistemas jurídicos prevejam formas de intervenção estatal nos conflitos do trabalho mais ou menos abertas ou intensas, no Brasil, adotou-se, desde 1939,  um modelo “sui generis”, em que a coerção estatal se opera de forma institucionalizada, através de Poder Judiciário.

Tal modelo sempre sofreu fortes críticas da doutrina, mormente com relação a dois pontos em especial: por se atribuir ao Judiciário o poder de criar condições de trabalho em função que tipicamente seria reservada ao Poder Legislativo e pelo fato de o Poder Judiciário intervir no conflito como árbitro não eleito pelas partes.

Na esteira de tal visão crítica, vários autores (citam-se, entre outros, Wilson Campos Batalha, Edgar Saad, Antonio Lamarca) adotaram uma postura restritiva sobre o alcance do Poder Normativo, pugnando que este teria competência apenas para estabelecer cláusulas de reajuste salarial – e não para fixar normas além das normas legais ou para modificar cláusulas contratuais ou normas consuetudinárias.  Tal posição restritiva terminou por ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal (RE 197911/PE – Min. Octávio Gallotti), que entendeu que a Justiça do Trabalho, no exercício do Poder Normativo,  somente poderá criar obrigações para as partes envolvidas no conflito, quando haja lacuna no texto legal, mas não poderá se sobrepor ou contrariar a legislação em vigor, criando condições mais vantajosas do que a previsão legal. Esta decisão levou ao cancelamento de vários Precedentes Normativos da Seção Especializada de Dissídios Coletivos do TST. Nesse sentido, também, a Súmula 190 do TST quando diz que “decidindo ação coletiva ou homologando acordo nela havido, o TST exerce o poder normativo constitucional, não podendo criar ou homologar condições de trabalho que o STF julgue iterativamente inconstitucional”.

Tal situação, porém, modificou-se substancialmente a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, que definiu novos parâmetros para a intervenção judicial nos conflitos coletivos. Por tal redação, a Justiça do Trabalho pode “decidir o conflito coletivo, desde que respeitando as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente

Tendo a norma constitucional já expressamente estabelecido quais são os limites do Poder Normativo,  não parece fazer mais sentido o entendimento de que a Justiça do Trabalho, no exercício da missão constitucional de decidir o conflito,  não possa se sobrepor ou contrariar a lei (desde que respeitados os limites de proteção legal mínima e os previstos em convênios coletivos) ou que estabelecer condições mais vantajosas que a previsão legal.

 Além disso, com a introdução do parágrafo 2º do art. 114 da Constituição Federal não poderá prevalecer tal  raciocínio do STF, porque “se as vantagens outrora previstas nos citados Precedentes Normativos (PN) traduzirem conquistas previstas em convenções anteriores, como condições mais favoráveis que a lei, a Justiça do Trabalho, no exercício de seu poder normativo, deverá respeitá-las, introduzindo-as entre as cláusulas da sentença normativa” (Alice Monteiro de Barros).

Por outro lado, a introdução das palavras “de comum acordo” na nova redação do parágrafo 2º do art. 114 da Constituição Federal reacendeu a polêmica em relação ao segundo ponto da visão restritiva:  o de que a Justiça do Trabalho atua como se árbitro fosse, sem expressa anuência das partes envolvidas.

Majoritariamente  tem se entendido que a sentença normativa tem natureza dúplice, ou seja, embora não traduza a aplicação de norma jurídica existente (e, assim, não represente típico exercício de função jurisdicional), não deixa de traduzir  exercício de poder decisório atribuído ao Estado – e, portanto, também tem natureza jurisdicional. Assim, tradicionalmente, se diz que a sentença normativa tem “corpo de  sentença e alma de lei”, pois, tem semelhança formal (modo de formação e exteriorização), com a sentença judicial  e semelhança material com a lei (criação de regras jurídicas “ad futurum”).

Segundo a visão restritiva, quando exerce o Poder Normativo, a Justiça do Trabalho não realiza função jurisdicional e, assim, falta-lhe legitimidade para atuar nos conflitos coletivos, salvo pelo consenso das partes envolvidas. Assim, para tal corrente, a introdução das palavras “de comum acordo” no parágrafo 2º do art. 114, CF explicita a vedação à intervenção do Poder Judiciário no processo negocial e aproxima o dissídio coletivo com a figura da arbitragem.

Já para a concepção contrária, a expressão “de comum acordo” não pode interpretada em dissonância do art. 5º, XXXV da Constituição Federal, que assegura o exame de lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário. Assim, a melhor interpretação da norma seria que o ajuizamento “de comum acordo” seria apenas mais uma faculdade  à disposição das partes (além da negociação direta e da arbitragem), mas não impediria o acesso ao Judiciário por qualquer das partes. Esta posição é majoritária em muitos  Tribunais Regionais do Trabalho, entre os quais o da 4ª. Região (RS). Porém, nos últimos anos, as decisões do Tribunal Superior do Trabalho sinalizam em sentido contrário, extinguindo o processo de dissídio coletivo quando há explícita manifestação de não-anuência por uma das partes.

A matéria encontra-se pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3431/2005).

Ainda mais polêmica é o exercício do Poder Normativo em conflitos em que ocorrem  greves, especialmente quando estas atingem atividades em serviços essenciais. Compete à Justiça do Trabalho, por expressa designação da CF e da Lei,  julgar eventual abuso do direito de greve e evitar prejuízos excessivos à comunidade decorrentes de movimentos paredistas. Esse já significativo poder é dramaticamente ampliado na medida em que se atribui também à Justiça do Trabalho a decisão sobre o mérito do conflito coletivo por meio do “dissídio coletivo de greve”. Na prática, termina o Judiciário Trabalhista tendo o poder de decidir pela procedência ou não das reivindicações e, também, o de determinar o fim do movimento grevista, o que, para muitos autores, parece excessivo.

 

 Referências bibliográficas:

BARROS, Alice Monteiro de. “Curso de Direito do Trabalho”, 3ª Ed., São Paulo, LTr, 2007.

GARCIA, Pedro Carlos Sampaio. “Limites do poder normativo da Justiça do Trabalho”. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 254, 18 mar 2004. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/4864. Acesso em 01/02/2012.

DELGADO, Maurício Godinho. “Direito Coletivo do Trabalho”, São Paulo, LTr, 2001.

HEPPLE, Bob. “La formación del derecho del trabajo en Europa”. Madrid, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1994.

MELO FILHO, Hugo Cavalcanti e AZEVEDO NETO, Platon Teixeira. “Temas de Direito Coletivo do Trabalho”. São Paulo, IGT-ALJT-LTr, 2010.

RIPPER, Walter Willian. “Poder Normativo da Justiça do Trabalho – Análise do antes, do agora e do possível depois”. Revista LTr.,  São Paulo: LTr, vol. 69, n.07, Julho/2005, p. 848/857.

TST, site www.tst.jus.br, acesso em 01/02/2012.

URIARTE, Oscar Ermida e AVILES, Antonio Ojeda. “El Derecho Sindical em America Latina”, Fundación de Cultura Universitária, Montevidéu, 1995.

 

Referências normativas:

art. 114 parágrafo 2º, CF

Capítulo IV da CLT (artigos 856 a 875).

Lei 7783/89 (Lei de Greve)

 

Jurisprudência uniforme dos tribunais:

Súmula n. 190 da Jurisprudência Uniforme do TST

Orientações Jurisprudenciais n. 15 e 38 da Seção Especializada de Dissídios Coletivos do TST

Precedentes Normativos 119 da Seção Especializada de Dissídios Coletivos do TST

 

Casuística:

EMENTA: AJUIZAMENTO DE AÇÃO COLETIVA. NECESSIDADE DE "COMUM ACORDO". A expressão "comum acordo", inserta no § 2º, do art. 114 da Constituição Federal, com a redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, trata-se de mera faculdade das partes em, consensualmente, ajuizarem ação coletiva, e não conflita com o direito de ação assegurado nos incisos XXXIV e XXXV, do art. 5º, também da Constituição Federal. Preliminar de extinção do feito, sem resolução do mérito, rejeitada. (TRT-4ª. Reg. - DC 0165500-73.2009.5.04.0000 – Relatora Flávia Lorena Pacheco. Julgamento: 25/07/2011. Órgão Julgador: Seção Especializada em Dissídios Coletivos).

EMENTA: DISSÍDIO COLETIVO - COMUM ACORDO ENTRE AS PARTES - JURISPRUDÊNCIA DO TST - PRESSUPOSTO PROCESSUAL - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO - RESSALVA ÀS SITUAÇÕES FÁTICAS JÁ CONSTITUÍDAS. A partir da EC 45, ressalvada a hipótese de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o exercício do poder normativo ganhou contornos de juízo arbitral, uma vez que o ajuizamento de dissídio coletivo é faculdade das partes, condicionada à existência de comum acordo entre os envolvidos na disputa. 2. Adotando interpretação flexível do art. 114, parágrafo 2º. da CF, a jurisprudência do TST tem admitido a hipótese de concordância tácita, de forma que apenas a recusa expressa da entidade suscitada configura óbice à resolução do conflito pela via do dissídio coletivo. 3. No caso, merece reforma a decisão regional que rejeitou a preliminar de ausência de comum acordo, uma vez que, desde a contestação, a Federação Suscitada argüiu expressamente a ausência desse pressuposto de  constituição válida do processo como causa de extinção do feito. 4. Ademais, se o comum acordo entre as partes diz respeito à escolha da via judicial como meio de solução do conflito coletivo, o pedido de extinção do processo com base na argüição de qualquer outra preliminar, no caso, ilegitimidade processual do Sindicato Suscitado, por si só, evidencia a discordância da Suscitada com a instauração da instância. 5. A simples recusa patronal na instauração da instância dispensa maiores divagações a respeito do preenchimento dos demais pressupostos de constituição válida do processo coletivo, pois a recusa é verificável de plano, enquanto as demais condições exigem exame mais acurado da prova dos autos. 6. Em face do art. 6º. Parágrafo 3o.,  Lei 4.725/65, a extinção do processo sem resolução do mérito não afeta as situações fáticas já constituídas decorrentes da sentença normativa proferida pelo Regional no exercício do poder normativo conferido pelo art. 114, parágrafo 2º. da CF . Recurso ordinário provido. (TST - RODC 1211008320055050000 121100- 83.2005.5.05.0000 - Relator: Ives Gandra Martins Filho. Julgamento: 10/05/2007.  Órgão Julgador: Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Publicação: DJ 01/06/2007).

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO. AUSÊNCIA DE COMUM ACORDO , PRESSUPOSTO ESPECÍFICO PARA AJUIZAMENTO DO DISSÍDIO. A regra, ante o que dispõe o art. 114 parágrafo 2º da Constituição Federal é a exigência de comum acordo para instauração do dissídio coletivo. Havendo, como no caso, clara evidência de que a parte contrária se opôs à instauração da instância, força é prover o recurso para declarar-se a extinção do processo, sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, IV do  CPC, por ausência do requisito do comum acordo.(TST – RODC 285000920095120000 28500-09.2009.5.12.0000 – Relator: Márcio Eurico Vitral Amaro. Julgamento: 12/9/2011 . Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Publicação: DJ 23/9/2011).