O conflito constitucional entre os direitos de propriedade e de greve

 

 

Após a EC 45, escreveu-se, sem a pretensão de polemizar, que em razão das modificações relativamente à greve, “A Justiça do Trabalho passa a ter competência para todas as ações que envolvam o exercício de greve. Assim, deslocam-se para a Justiça especializada as ações que hoje envolvem, por exemplo, ações possessórias que visem manutenção ou restituição de posse sobre imóveis ocupados por grevistas (arts. 932 e 933 do CPC)  ou interditos proibitórios que visem inibir a ação de piquetes grevistas (art. 3o da Lei 7.783/89)”. [1]

 

Entretanto, apesar da clareza do texto constitucional, temos assistido, com alguma perplexidade, que proliferarem decisões da Justiça Estadual, sendo a mais recente no Estado de Goiás, em que são deferidas liminares contra manifestações de trabalhadores grevistas nas proximidades da empresa.

 

Seguindo a ótica do direito civil, em que se privilegia o individualismo em detrimento do coletivo, tais decisões parecem examinar a controvérsia sob o exclusivo ângulo do direito de propriedade, privilegiando o direito de posse que venha a ser turbado pela ação dos grevistas, especialmente durante o curso de manifestações em piquetes que pretendam sensibilizarem colegas não grevistas a aderirem ao movimento. Na prática, tais decisões desconhecem o exercício do direito de greve, assim como o direito de livre expressão dos grevistas, exatamente porque não contemplam o conflito em sua dimensão jurídico-trabalhista.

 

Em outro trabalho, examinando a formação de “piquetes”, dissemos:

 

Primeiramente, então, registre-se a total confusão sobre o que seja o “direito ao trabalho”. Por esta expressão, deveria-se compreender algo bem diferente. Sabemos, todos, que o sistema capitalista caracteriza-se por apartar a propriedade dos meios de produção dos verdadeiros produtores, os trabalhadores. Este quadro torna-se mais nítido na proporção em que se consolida a forma capitalista de organização da produção... O trabalhador contrário a uma greve deve ter garantido o direito de expressar este seu entendimento na sua assembléia. O Estado não pode usá-lo, posteriormente, como instrumento de divisão, sob pena de, em realidade, estar interferindo, diretamente, nas resoluções das assembléias de trabalhadores... Considere-se, inicialmente, que a destruição dos estabelecimentos não é prática utilizada pelos trabalhadores brasileiros, nos dias atuais. Já foi ultrapassado o tempo de resistência ao desenvolvimento da manufatura, através de ações depredatórias.” [2]

 

         Em tais controvérsias, cabe o exame do direito de greve, do direito de liberdade e manifestação e também do direito de propriedade, que aliás também esta condicionado ao atendimento da “sua função social”, Constituição, art 5º, incisos XXII e XXIII.

 

Seguindo a melhor doutrina, na interpretação constitucional, não se aplica na colisão de dois valores juridicamente protegidos pela Constituição (no caso, o direito de greve e o direito de propriedade), a mesma lógica própria dos conflitos de normas. Se neste caso, não se admite a coexistência no mesmo sistema jurídico de duas normas contraditórias entre si, quando se trata de conflito entre dois princípios constitucionais, não se aplica a lógica da exclusão. Em tal caso, a regra é exatamente o oposto: a da coexistência e da harmonia dos princípios colidentes, através do mecanismo da ponderação. Ou seja, ao invés da eliminação de um dos termos contraditórios, busca-se o equilíbrio dos contrários, a convivência possível entre dois valores essenciais ao sistema constitucional, de modo que a harmonização de ambos no caso concreto seja a reafirmação de ambos, que, ainda que se limitados reciprocamente em sua eficácia.

 

Aqui, pode ser útil lembrar as considerações de Robert Alexy no sentido de que “Los principios son mandatos de optimización con respecto a las posibilidades jurídicas y fácticas. La máxima de la proporcionalidad en sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización con respecto a las posibilidades jurídicas. Si una norma de derecho fundamental con carácter de principio entra en colisión con un principio opuesto, entonces la posibilidad jurídica de la realización de la norma de derecho fundamental depende del principio opuesto. Para llegar a una decisión, es necesaria una ponderación en el sentido de la ley de colisión.”.[3]

 

Assim, não se pode aceitar que, para garantir o direito de posse (que decorre do direito de propriedade da empresa), o Estado, através do Judiciário, negue o exercício do direito de greve, impedindo que os grevistas se manifestem em frente ao local de trabalho ou que possam pacificamente tentar aliciar seus colegas para aderir ao movimento. Se o ordenamento jurídico brasileiro admite a greve, como um conflito regulado entre capital e trabalho, não é possível entender como o Estado possa tentar suprimir tal conflito, pela simples negação das possibilidades de exercício do direito de greve, como se afirmando a supremacia do direito de propriedade sobre os demais direitos constitucionais.

 

        

         Sendo assim, conclui-se que:

 

-a competência para exame sobre ações possessórias que envolvam o exercício do direito de greve é da Justiça do Trabalho;

 

         -nestas controvérsias, na avaliação concreta da possível lesão do exercício do direito de propriedade, não pode ser alijada da análise o direito dos trabalhadores ao exercício do direito de greve e o de livre manifestação, entre outros, também constitucionalmente assegurados.

 

 

         Luiz Alberto de Vargas

         Ricardo Carvalho Fraga

         Juízes do Trabalho RS

 

 



[1] Dos signatários, “Relações Coletivas e Sindicais – Nova Competência após a EC 45”, in “Justiça do Trabalho: competência ampliada”, São Paulo: LTr, ANAMATRA, 2005, pgs 331/344, especialmente 335.

[2] Dos siganatários, “A Ação dos Piquetes e Comissões de Divulgação da Greve”, in “Aspectos dos Direitos Sociais na Nova Constituição”, São Paulo: LTr, 1989, pgs 129/136.

[3] Robert Alexy, “Teoría de los Derechos Fundamentales”, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pg 112.