Radicalidade democrática. Estado e Poder Judiciário. Caminhos da Participação Popular.



Da noite para o dia, o Judiciário alcançou inusitado prestígio, tomando o centro de acalorados debates. Estes, nem sempre, foram marcados pela serenidade e pelo conhecimento de causa. De qualquer forma, foram trazidas para a cena pública quest¨es de há muito enfrentadas por juristas, advogados, juízes e funcionários, mormente através de suas entidades representativas.


Passou-se à discussão ampla a respeito da composição dos Tribunais, recrutamento e qualificação dos juízes, autonomia e controle do Poder Judiciário, estrutura e aparelhamento da máquina judiciária, etc. Criou-se o clima propício e indispensável para a reforma há tantos anos reclamada pela comunidade judiciária.


Não se pretende aqui tratar de tema tão vasto, mas apenas versar sobre um desses itens da pauta de reforma do Judiciário, talvez exatamente o de maior apelo popular: o da morosidade das decis¨es judiciárias. Ao fazê-lo pretende-se, a título ilustrativo, demonstrar os riscos das boas intenç¨es que, no afã de responder à saudàvel pressão popular pelas mudanças, afastam-se de soluç¨es mais duradouras que, à custa da experiência histórica, ainda são a melhor resposta inclusive para os novos desafios institucionais.


Na medida que parece já consensual a necessidade de agilização e modernização do Judiciário, é oportuno resgatar alguns princípios básicos de que o legislador não deve se afastar, sob pena de que, sob a intenção de atualizar o processo judiciário, estar-se-á, na verdade, abrindo caminho para o arbítrio e para a fragilização do direito do cidadão à prestação juridiscional.


Primeiramente, é de se registrar que, efetivamente, a vida cotidiana tratou de demonstrar cabalmente as insuficiências da máquina judiciária em atender as demandas sociais, especialmente aquelas suscitadas pelas vicissitudes das políticas oficiais desatentas aos parâmetros constitucionais. Como nos casos do congelamento das cadernetas de poupança, o não reajustamento do índice de 147% para aposentados e pensionistas e no bloqueio da liberação do FGTS para os servidores ex-celetistas, foi ao Judiciário que os cidadãos, em massa, recorreram, tendo ingressado milhares de aç¨es de conteúdo idêntico, que literalmente abarrotaram os cartórios de todo o país. Certamente é possível, com toda a razão, argumentar que tais aç¨es decorreram de atitudes pouco refletidas do Poder Executivo, tomadas unilateralmente, sem que se buscasse - ou cogitasse - de um consenso social que legitimasse tais medidas e, portanto, de certo modo, poder-se-ia pensar que tais quest¨es não precisariam ter batido à porta do Judiciário. Mesmo assim, institucionalmente não pode o Judiciário se esquivar à responsabilidade de responder ao desafio que lhe foi lançado: crises decorrentes de divergências na interpretação dos textos legais são corriqueiras nos Estados modernos e exatamente para dirimir tais controvérsias existe um Poder independente da República com a função precípua de zelar pelo fiel e justo cumprimento das leis e da Constituição.


Além do mais, a avalanche dos processos de aposentados, poupadores e servidores públicos somente agravou carências já conhecidas, explicitando para o grande público a importância do Judiciário, assim como a necessidade urgente de sua modernização, a fim de que a definição das pendências jurídicas que verdadeiramente paralisavam a sociedade brasileira tivessem pronta definição.


Tornou-se voz corrente que o Judiciário "demora demais" ou que a "Justiça falha quando tarda". A justeza dessas afirmativas é inequívoca. Entretanto, a apenas meia-verdade se chega quando se afirma que o processo judiciário é moroso. Fundamental que se conclua ONDE e PORQUE há morosidade. Tal assertiva tem um postulado implícito: nem toda demora é morosidade e, portanto, existem demoras que cumprem relevante papel social e, portanto, não podem,nem devem ser suprimidas.


Existem prazos judiciais que, a despeito de soarem para o grande público como simples procrastinação, em realidade são essenciais à segurança do processo. O sentimento mais agudo contra a morosidade do Judiciário extravasa mais claramente nos processos criminais, mormente aqueles de delito hediondo. O clamor popular passa a exigir um julgamento sumário, com a redução substancial dos prazos de defesa, aproximando o processo de um verdadeiro linchamento. Para a população, quando a convicção popular se forma quanto à culpabilidade de determinado réu, qualquer demora na sua condenação passa a ser uma inaceitável conivência do Judiciário com o crime - mesmo que a "demora" em questão seja o simples atendimento dos prazos legais de defesa. Para o povo insuflado pelo sentimento de vindita - ainda mais se este é encampado pela mídia - a possibilidade de triste reedição dos famosos casos de Dreifuss, Irmãos Naves ou Motta Coqueiro inexiste. O Judiciário deixa de ser o instrumento social de busca da verdade para se tornar simples carrasco a serviço dos mais baixos instintos da sociedade.


A gravidade do exemplo trazido tenta, numa situação limite, elucidar a importância da segurança do processo, com o respeito dos prazos e ritos legais, estabelecendo regras previamente conhecidas e por todos aceitas, mesmo que para tanto haja certa demora no processo.


A concessão do prazo razoável às partes - não apenas à defesa, note-se - para se manifestar sobre todos os atos processuais relevantes garante o contraditório e, assim, que a decisão consequência de amplo debate no processo. Assim, os prazos não podem ser exíguos, o que os tornaria inócuos, simples arremedo de contraditório. Muito pior quando este prazo não existe na lei ou é drasticamente reduzido nos anteprojetos de reforma processual. Assim, por exemplo, não há prazo na C.L.T. para que o autor se manifeste sobre a contestação no processo trabalhista, o que causa enormes transtornos. O Anteprojeto de Reforma do Processo do Trabalho houve encurtamento dos prazos judiciais, o que implica em certo e grave empobrecimento do processo.


Longe de ser uma idéia isolada, a proposição do Anteprojeto expressa um sentimento que assola muitos juristas e legisladores e que, a despeito das boas intenç¨es, como já se disse, não é a melhor e mais duradoura proposta, salvo melhor juízo. Trata-se da crença de que "discute-se demais" no processo, o que o leva a idéia correlata de que "o importante é julgar, seja de que forma for", uma vez "qualquer decisão é melhor do que nenhuma"...


É sintomático que todas as proposiç¨es de reforma processual - não apenas trabalhista - se voltem para a rapidez dos julgamentos, esquecendo-se a qualidade dos julgados e, mesmo, sua eficácia social. Não é preciso dizer que uma "decisão qualquer" muito provavelmente deixe de cumprir seu papel social de pacificação do conflito, sendo muito provável que, ao invés disso, concorra para agravá-lo. Se a parte não pode, com tempo e oportunidade, apresentar todos os argumentos e provas que pretendia produzir, provavelmente não reconhecerá o julgamento tenha sido justo. A própria imagem do Judiciário se compromete, quando este julga "de qualquer forma", ainda que celeremente.


É preciso dizer que, durante os últimos anos, certamente em decorrência do aumento das demandas judiciais, alastrou-se a tendência de se priorizar a quantidade. Toda a enfâse foi transferida para os dados estatísticos de produção, como se se pudesse mensurar o trabalho do Magistrado com tais parâmetros, mais apropriados aos operários das linhas de montagem industrial. Se a sociedade tem direito à fiscalização do trabalho dos magistrados, certamente não se pode adotar o critério de "produção quantitativa" como adequado para apuração da produtividade da prestação jurisdicional.


Outro reflexo visível desta orientação pode ser surpreendido nos procedimentos que implicam numa supervalorização das instâncias superiores e, por reflexo, na substimação e subordinação das instâncias inferiores. Assim, o relatório do Deputado Nelson Jobim, dando às súmulas de jurisprudência efeito vinculante, é exemplo cabal de tal equívoco, que pretende a solução da crise judiciária pela exclusão da diferença, como se a magnitude da crise brasileira, multifacética e altamente diferenciada, pudesse ser enclausurada nos estreitos limites normativos das soluç¨es de cúpula.


O direito à pluralidade de decis¨es, com tantas divergências e contradiç¨es quanto é rica e contraditória a sociedade, é uma direito democrático do cidadão, sendo atentatória à liberdade de todos as restriç¨es a que os juízes, no livre exercício de suas convicç¨es, julguem a lei de acordo com seus próprios critérios, como lhes determinam suas consciências.
A maior eficácia de qualquer uniformização de entendimento, dentro e fora do campo jurídico, para ser duradora, pressup¨e amplo debate anterior. Pressup¨e, também, antes disso, a existência de condiç¨es sociais mais amplas para a construção do consenso mínimo.


As grandes soluç¨es para os problemas nacionais mais graves ainda não estão em contrução. O Poder Legislativo, com o "impeachment" do Presidente Collor e o processo de cassação dos parlamentares acusados na CPI do Orçamento, demonstra alguma sensibilidade com as idéias de resgate da ética, reclamadas pela sociedade civil organizada. O Poder Executivo ainda não encontrou as melhores soluç¨es para a retomada do desenvolvimento econômico do país e,nem mesmo, para a democratização radical e profunda das instituiç¨es. O Poder Judiciário, neste quadro, cada vez mais, tem um papel social relevante a ser cumprido. Para tanto, se exige consciência sobre as inadiáveis necessidades da população e conhecimento das imensas possibilidades do país.


Quando a atual crise de legitimidade atinge as mais consolidadas instituiç¨es da sociedade brasileira e surgem até questionamentos sobre a própria viabilidade de uma vida social organizada, danosas são propostas que, a pretexto de buscar a celeridade, resultam no abafamento do conflito, no reforçamento dos controles verticais da hierarquia judicial com comprometimento da independência dos juízes.


Ricardo Carvalho Fraga
Luiz Alberto de Vargas

Juízes do Trabalho no Rio Grande do Sul.