Relações Coletivas e Sindicais - novas competências  após a EC-45

 

Luiz Alberto de Vargas e Ricardo Carvalho Fraga

Juízes do Trabalho no Rio Grande do Sul

 

Entre as mais importantes novidades trazidas pela Reforma do Judiciário relativamente à ampliação de competência da Justiça do Trabalho está o deslocamento da competência que, até então, detinha a Justiça comum para ações relativamente às relações sindicais e sobre exercício de greve.

 

Diz o novo artigo 114 da Constituição Federal, em seus incisos II e III, que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

 

“II- as ações que envolvam exercício do direito de greve;

III- as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores,e entre sindicatos e empregadores.”

 

De fato, já de há muito tais modificações se impunham, já que pouco sentido fazia que a apreciação de tais demandas fosse feita por juiz que não detinha também a competência para apreciar o núcleo das relações jurídicas (no caso, a relação de trabalho) do qual dimanam os fenômenos do sindicato e da greve. Exatamente por este motivo, não são raras decisões judiciais que, em seu teor, desconhecem a peculiaridade das entidades sindicais em relação a entidades em geral ou que desconsideram a greve como um direito instrumental, vinculado a uma legítima pressão exercida pelas entidades sindicais.

 

Assim, por seu alheamento da realidade trabalhista, a Justiça comum, muitas vezes, autorizou a criação de sindicatos em flagrante descumprimento da regra da unicidade sindical contida no art. 8o, II, da Constituição Federal. Da mesma forma, inúmeros deferimentos liminares em ações de interdito proibitório por juízes estaduais terminaram, na prática, por impedir a realização de piquetes de grevistas, em desrespeito ao princípio constitucional de livre manifestação e ao direito dos grevistas de comunicarem a seus colegas a própria existência do movimento paredista.[1]

 

Além disso, relativamente à representatividade sindical, não fazia sentido que a Justiça do Trabalho, competente para decidir sobre a eficácia das normas coletivas produzidas pelas entidades sindicais e que, assim, apreciava incidentalmente eventuais impugnações sobre a legitimidade destas, não fosse também competente para apreciar originalmente tais questões. O risco de decisões incongruentes era evidente, o que, agora, fica afastado pela atribuição da competência unicamente à Justiça especializada.

 

A alteração constitucional representa, além disso, um evidente fortalecimento da Justiça do Trabalho, o que deve ser encarado com satisfação e senso de responsabilidade pelos operadores do Direito. Por outro lado, o texto constitucional poderia ter sido mais claro, o que evitaria dúvidas em sua interpretação.

 

  1. Competência para as ações que digam respeito à atividade sindical.

 

 

O inciso III do artigo 114 fala em  “ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores,e entre sindicatos e empregadores”. A primeira dúvida que pode surgir é se a norma está a limitar a nova competência apenas às ações sobre representação sindical (sendo as expressões seguintes meramente explicativas de modalidades de ações deste tipo) ou estamos diante de uma competência ampliada (ações sobre representação sindical + ações entre sindicatos + ações entre sindicatos e trabalhadores + ações entre sindicatos e empregadores).

 

A segunda hipótese parece a correta, já que mais consentânea com a intenção do legislador constitucional de atribuir ao Judiciário Trabalhista competência para todas as ações que envolvam o direito sindical[2].

 

Aqui, há de se fazer clara distinção entre ações que digam respeito essencialmente à atuação sindical e outras que, embora envolvam sindicatos, não dizem respeito a tal atuação – e, assim, não são de competência da Justiça Laboral.  Não cabe pensar que a extensão de competência alcance, por exemplo, uma ação de despejo movida pelo proprietário do imóvel alugado ao sindicato. Como a competência não se fixa, neste caso, em razão da pessoa, mesmo que o referido proprietário fosse eventualmente associado ao sindicato, tal fato seria irrelevante para determinar a competência da Justiça do Trabalho.

 

Portanto, será a matéria envolvida na ação, no caso a relevância para a atuação sindical, que fixará a competência ou não da Justiça do Trabalho. Por outro lado, também em uma interpretação teleológica da norma, deve-se entender a expressão “sindicatos” como sendo equivalente a “entidades sindicais”,  o que inclui as Federações e Confederações e,  também, as Centrais Sindicais. Embora estas últimas não detenham ainda personalidade sindical, são reconhecidas pelo ordenamento jurídico como representativas dos trabalhadores a elas filiados, tanto que integram conselhos governamentais, como os do FAT e da Previdência Social.  Da mesma forma, a competência alcança também os comitês de empresa (art. 11 CF) que, ainda que incipientes em nosso país, têm natureza sindical. Por fim, todas as ações que digam respeito às Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (art. 162 e seguintes da CLT) e as Comissões de Conciliação Prévia (Lei 9.958/2.000)- inclusive constituição e eleição de seus membros -, por sua natureza representativa dos trabalhadores e empregadores, também são de competência da Justiça do Trabalho.

 

a)     ações relativas à representação sindical:

Aqui cabem todas as ações que dizem respeito à legitimidade sindical, em especial aquelas que decorrem de fusão ou desmembramento territorial ou categorial de sindicatos já existentes. Podem ser apontados os mandados de segurança para obtenção de código na CEF para contribuição sindical, a ação declaratória de representação sindical, a ação para delimitação de base territorial, as relativas a filiação ao sistema confederativo, da criação de entidade, realização de atos constitutivos, assembléia geral e registro da entidade, a ação declaratória de vínculo associativo com determinada entidade sindical, bem como diversas controvérsias sobre eleições sindicais.

 

O número de tais ações tende a aumentar consideravelmente caso seja aprovado, nos termos em que foi apresentado pelo Governo recentemente, a Reforma Sindical. [3]

 

Como o projeto em questão institui a pluralidade sindical,  pode-se prever um incremento de demandadas entre entidades sindicais concorrentes numa mesma base sindical, bem como impugnações a decisões do Ministério do Trabalho  relativamente a reconhecimento de representatividade sindical. Em relação a estas últimas ações, a despeito da intervenção do Ministério do Trabalho, estas não são atraídas pela competência da Justiça Federal, permanecendo, ante o claro texto da norma constitucional, no âmbito da Justiça do Trabalho. [4]

 

b)     ações intersindicais:

Como já se disse, a regra de competência deve ser interpretada como  funcionalizada à atuação sindical. Assim, além de todas as ações que dizem respeito à legitimidade sindical (e que já estão previstas na competência relativa à representação sindical), também aquelas em que se disputa a quem é devida as contribuições sindicais, assistenciais ou confederativas passam a ser competência da Justiça do Trabalho.

 

c)      ações entre sindicatos e trabalhadores:

Aqui se incluem todas as chamadas demandas intra-sindicais, ou seja, todas as ações relativas a eleições sindicais e aos estatutos da entidade sindical, como impugnação de candidaturas,  convocação ou anulação de assembléias gerais ou, mesmo, cobrança de mensalidade associativa. O termo “trabalhador” não pode ser rigorosamente interpretado, uma vez que, por óbvio, nele estão abrangidos os desempregados e os aposentados, pois o vínculo sindical não se rompe com o fim do contrato de emprego, tanto é assim que o próprio artigo oitavo, inciso sétimo, assegura ao aposentado filiado o direito de votar e ser votado nas organizações sindicais.

 

d)     ações entre  sindicatos e empregador:

As ações coletivas, de substituição processual, em que o sindicato age em nome próprio sustentando direito alheio, já eram de competência da Justiça do Trabalho. Passam agora à competência da Justiça Laboral aquelas ações em que o sindicato defende direito  próprio, ainda que orientado pelos interesses da categoria que representa. São ações de natureza individual – e não coletiva.

 

Ações em que os sindicatos, profissionais ou patronais, exigem  o recolhimento de contribuições sindicais, assistenciais e confederativas  das empresas (bem como consignações em pagamento relativamente a essas matérias) passam a ser, todas, de competência da Justiça do Trabalho, encerrando acesa disputa doutrinária e jurisprudencial relativamente às contribuições aos sindicatos de empregadores. [5]

 

 

  1. As modificações relativas ao Poder Normativo e à greve:

 

Conforme o novo artigo 114, parágrafos 2o e 3o:

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito."

 

As mais relevantes modificações introduzidas pela Reforma do Poder Judiciário no âmbito trabalhista são as que dizem respeito ao direito coletivo.

 

a)das modificações relativamente à greve. A Justiça do Trabalho passa a ter  competência para todas as ações que envolvam o exercício de greve. Assim, deslocam-se para a Justiça especializada as ações que hoje envolvem, por exemplo, ações possessórias que visem manutenção ou restituição de posse sobre imóveis ocupados por grevistas (arts. 932 e 933 do CPC)  ou interditos proibitórios que visem inibir a ação de piquetes grevistas (art. 3o da Lei 7.783/89).

 

Tais ações, por sua natureza ordinária, são de competência da primeira instância, que, por sua vez, passa a ser, também, responsável, em geral, pela declaração de abusividade de greve[6], conforme previsto no art. 14 da Lei 7783/89, assim como ações cautelares que visem o prosseguimento de serviços mínimos em atividades essenciais ou permissão para a contratação de substitutos para manutenção de serviços cuja paralisação resulte em prejuízo irreparável, deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, assim como para permitir a retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento paredista (Lei 7.783/89, art. 9o). Igualmente, ações que visem coibir práticas anti-sindicais, como as que pretendam ações de empregadores no sentido de substituir ilegalmente os grevistas ou o uso da força para obrigar o retorno dos empregados ao trabalho.[7]

 

Da mesma forma, ações cíveis que visem reparação por danos causados por atos ilícitos ocorridos durante a greve são de competência da Justiça Laboral. Quanto à competência para ações penais por delitos causados por grevistas igualmente competem à Justiça do Trabalho, em função da abrangência do dispositivo constitucional (artigo 15 da Lei 7.783/89). [8]

 

Matéria polêmica é competência em relação a greves de servidores públicos, tendo-se presente recente decisão do STF, ainda em sede liminar,[9] que suspendeu a interpretação do inciso I do art. 114 da Constituição Federal de que competiria à Justiça do Trabalho dissídios relativos à relação estatutária. A ser confirmada tal decisão liminar, a greve realizada por servidores estatutários continuaria sob a esfera competencial da Justiça Federal.[10]

 

A Emenda Constitucional prevê que, em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito (parágrafo 2o do art. 114).

 

Há de se entender aqui uma dupla restrição contida no referido dispositivo constitucional: a) restringem-se fortemente as hipóteses de ajuizamento do chamado dissídio coletivo de greve, de forma que a titularidade para o mesmo limita-se ao Ministério Público do Trabalho e  b) tal intervenção somente pode ocorrer em casos de greve em atividade essencial em que possa haver lesão do interesse público. Assim deve ser interpretado, de acordo com a norma constitucional, o inciso VIII do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93, que conferia competência ao Ministério Público do Trabalho para, genericamente,  instaurar instância em caso de greve. Fica revogado parcialmente o art. 8o da Lei 7783/89, que previa a possibilidade das partes também ingressarem com dissídio coletivo em caso de greve. Finalmente, também parcialmente revogado o art. 856 da CLT, no que mesmo sentido. A possibilidade de que o próprio Presidente do Tribunal instaurasse a instância já era negada pela doutrina, além de negada pela prática forense.

 

Portanto, doravante, somente nos casos de greve em atividade essencial em que, a critério do Ministério Público do Trabalho, possa haver lesão do interesse público, e por este houver ajuizamento de dissídio coletivo, a Justiça do Trabalho, originalmente em segunda instância, decidirá sobre o mérito da greve (procedência ou improcedência das reivindicações), bem como julgará alegações de abuso do direito de greve e  regulará outras questões relativas ao movimento paredista, como o pagamento dos salários dos dias parados (art. 8o, , 14 e 15 da Lei 7783/89).[11] Da mesma forma, tal ocorreria se ambas as partes ingressassem com dissídio coletivo,  a nova condição necessária para o acesso das partes ao Poder Normativo, independentemente da existência ou não de greve. Tal hipótese é analisada no item que segue.

 

b)Do esmaecimento de Poder Normativo

Relativamente ao do Poder Normativo, passa-se a exigir, nos dissídios coletivos de natureza econômica,  que ambas as partes (patrões e empregados) concordem com o ajuizamento do dissídio coletivo. Sustenta-se que a alteração constitucional transformou essencialmente o Poder Normativo, que passa a constituir-se em uma forma de arbitragem pública.[12] Não parece correta tal opinião, pois, em nenhum momento, a norma constitucional autoriza pensar que o Judiciário do Trabalho deixe de atuar como órgão jurisdicional (entendimento já pacificado na doutrina e na jurisprudência) nos conflitos coletivos. Assim, ao decidir o conflito, o Judiciário, no exercício  do Poder Normativo (essencialmente criativo, no sentido de produtor de normas de eficácia erga omnes) não se limita ao que restritamente alegaram as partes, aplica a totalidade do ordenamento jurídico existente e  não está vinculado às “ofertas finais” das partes em litígio.

 

Há quem sustente a inconstitucionalidade da alteração, em face do princípio da inevitabilidade da jurisdição, com base no art. 5o, XXXV da Constituição Federal.[13] Não parece fácil que prospere tal argumento, já que não há propriamente falar em “lesão de direito”. O Judiciário do Trabalho, no exercício do Poder Normativo, não aprecia ou interpreta direito já existente – e que, tenha supostamente sido lesado – mas verdadeiramente cria direito novo. Tratando-se de fonte heterônoma, não se pode dar as normas que prevêem o Poder Normativo interpretação ampla, mas necessariamente restrita, em atenção ao contido no art. 5o, II. da Constituição Federal.

 

De toda sorte, na prática, corre-se o risco de estar criando graves restrições que tendem a limitar fortemente a uma importante fonte material de normas coletivas, sem que fique claro que a autocomposição das partes possa ocupar o vazio normativo que se criará pela exigência de comum acordo entre as partes para o ajuizamento de dissídio coletivo. Pode-se imaginar dificuldades para que trabalhadores e empresários aceitem o ajuizamento comum de dissídio coletivo. Também é possível supor que a medida aumente a flexibilização das normas legais, já que as exigências patronais tenderão a se concentrar em cláusulas flexibilizadoras que, até então, recusadas pelos trabalhadores e não homologadas pela Justiça do Trabalho.

 

No que remanesce do Poder Normativo o legislador constitucional introduz, ainda, outra alteração, qual seja, a exigência de que o Tribunal, ao apreciar o conflito coletivo, respeite, além das condições mínimas legais de proteção (já contidas na norma revisada), as normas “convencionadas anteriormente”.[14] Trata-se de outra forte limitação ao exercício do Poder Normativo, pois este, doravante, se limitará às chamadas “cláusulas novas”, uma vez que, em relação às cláusulas já existentes, estas necessariamente deverão ser respeitadas como disposições mínimas.[15]  O sentido da norma deve ser o de proibição da chamada “reformatio in peius” – e não no sentido de proibição de qualquer alteração da norma revisanda.

 

Assim, devem ser respeitadas as disposições já convencionadas como mínimo de proteção as quais o julgador não pode reduzir – embora nada impeça que sejam melhoradas, ou seja, mais benéficas ao trabalhador. A nova limitação do Poder Normativo (de proibição do “reformatio in peius”) apenas estende às normas coletivas a restrição que já existia na norma constitucional relativamente às normas legais. Não parece cabível a dúvida de que a restrição se aplique a todas as normas coletivas, quer convencionadas diretamente entre as partes, quer as constantes de sentença normativa. A discriminação entre normas coletivas neste caso seria arbitrária e destituída de senso comum.

 

Por fim, diga-se que esta nova limitação do Poder Normativo – a proibição de piorar as condições de trabalho já convencionadas coletivamente – possivelmente funcionará, na prática, como mais um fator de desestímulo para que os empresários concordem com o ajuizamento comum do dissídio coletivo.[16]

 

A mitigação (melhor dizer-se, a quase extinção) do Poder Normativo contemplada na reforma constitucional era uma conseqüência previsível de uma determinada orientação implementada pelo Tribunal Superior do Trabalho, de franca hostilidade com o exercício do Poder Normativo,[17] consistente na interposição de sucessivos óbices ao ajuizamento de dissídio coletivo (exigência de quorum de assembléia geral sindical e de esgotamento de negociação prévia) e na extinção sumária de inúmeros processos de dissídio coletivo.

 

A solução adotada pelo reformador constitucional já era prevista no Fórum realizado ao tempo do Ministro do Trabalho Walter Barelli, que discutiu a modernização das relações sindicais no Brasil. Ocorre que tal documento contemplava uma série de medidas a serem adotadas concomitantemente e que constituíam a chamada “fase de transição”, evitando que a abrupta alteração institucional prejudicasse os direitos já conquistados pelos trabalhadores. Entre as medidas preconizadas estava a adoção da chamada “ultraatividade” das normas coletivas, de maneira que as normas coletivas não tivessem mais prazo de vigência e, assim, vigorassem até que norma ulterior as modificasse ou as extinguisse. [18]

 

Com isso pretendia-se evitar que conquistas histórias dos trabalhadores contidas em normas coletivas viessem a ser extintas por força da simples recusa patronal em renovar as cláusulas normativas que as previam.[19]

 

Outro ponto igualmente relevante – e que necessariamente deveria estar contido em uma fase de transição – seria uma norma legal prevendo a indexação dos salários à inflação passada. De fato, até a Emenda Constitucional n. 45, era o Poder Normativo da Justiça do Trabalho o principal agente de recomposição dos salários, por meio da fixação, em sentenças normativas,  de reajustes com base na inflação do período revisando.  É provável que, doravante, não  mais ocorra, via dissídio coletivo, a indexação salarial, o que obrigará as entidades sindicais dos trabalhadores a procurar outro caminho para a revisão periódica dos salários.

 

c)       fim do dissídio coletivo de natureza jurídica.

Os dissídios coletivos dividem-se tradicionalmente em: a) dissídios coletivos de natureza econômica e b)dissídios coletivos de natureza jurídica. A doutrina conceitua a diferença básica entre eles a aplicação de regras preexistentes ou a criação de regras novas.[20] Conforme Russomano, nos primeiros “o debate se situa no quadro de preceitos jurídicos preexistentes”, enquanto que, nos segundos, “tem-se por alvo a alteração de condições econômicas através da criação de outras normas, também coativas e gerais”.[21]

 

O novo artigo constitucional se refere a dissídios coletivos de natureza econômica, silenciando quanto a dissídios de natureza jurídica. É relevante que não há norma celetista  que preveja tal tipo de dissídio, embora este tenha sido unanimemente aceito pela doutrina. Somente a Lei 7.701 de 21 de dezembro de 1.988 refere o instituto, em dois artigos, ao tratar da especialização de Turmas dos Tribunais Regionais do Trabalho. A natureza declaratória do dissídio coletivo de natureza jurídica torna-o bastante próximo da ação declaratória[22], entretanto com esta não se confunde. A ação declaratória, de jurisdição típica, compete ao juiz de primeiro grau. Já o dissídio coletivo de natureza jurídica compete originalmente ao segundo grau. O escasso uso prático de tal instrumento confirma sua pouca importância em nosso ordenamento jurídico, o  que permite que se questione qual a relevância de sua sobrevivência, bem como, em especial, qual seria a justificativa para sua manutenção nos dias de hoje.[23]

 

A jurisprudência tem entendido que, por se tratar de dissídio coletivo, mesmo os de natureza jurídica não prescindem de autorização por assembléia geral e somente podem ser ajuizados após o esgotamento da negociação prévia.[24] Da mesma forma, o Regulamento Interno do TST, art. 313 prevê dissídios coletivos de natureza jurídica para a “interpretação de cláusulas de sentenças normativas, de instrumentos de negociação coletiva, acordos ou convenções coletivas, de disposições legais particulares de categorias profissional ou econômica e de atos normativos”.

 

As restrições já referidas parecem indicar tratar-se de um caso particular de dissídio coletivo que se justifica unicamente pela existência do Poder Normativo. De fato, como bem aponta Carlos Alberto Moreira Xavier, “a atividade interpretativa da Justiça do Trabalho, nos dissídios coletivos de natureza jurídica promana, sim, do poder normativo constitucionalmente explicitado”. Exatamente por ser uma decorrência do poder normativo, justifica-se que a competência para tal tipo de dissídio seja originária do segundo grau. Não fosse assim, o Tribunal estaria usurpando competência originária da primeira instância para ação declaratória ou agindo como mero órgão de consulta, o que é vedado pelo Código de Processo Civil, art. quarto.[25]

 

Como decorrência de tal constatação, pode-se afirmar que, na interpretação em dissídio coletivo de natureza jurídica, mais que uma atividade jurisdicional, o que o Tribunal faz é exercitar seu Poder Normativo, não hesitando, se for o caso, em utilizar a função criativa que esse Poder lhe confere, fazendo substituir a regra em interpretação por regra nova, mais compatível com a realidade e com os interesses das partes. No dizer de Carlos Alberto Moreira Xavier, nesse caso, “a sentença normativa emergente daquele processo estabelece nova regra, mas a regra nascida da regra e, não como nos dissídios coletivos de natureza econômica, a regra nascida dos fatos”. Assim, “a interpretação, no caso, não incidirá sobre situações jurídicas plenamente individualizadas, mas sobre situações abstratamente consideradas, as quais, quando de sua concreção, deverão observar aquilo que nasceu da interpretação havida”.[26]

 

Por essa linha de raciocínio, justificam-se plenamente as exigências de assembléia geral autorizatória e de negociação prévia, já que a própria interpretação da norma coletiva passa a ser objeto de negociação coletiva. Se corretas tais premissas, a partir do forte esvaziamento do Poder Normativo, parece não haver mais justificativa para a existência dos dissídios coletivos de natureza jurídica.

 

Pois se a norma constitucional menciona apenas a existência de dissídios de natureza econômica e os limita às escassas hipóteses de ajuizamento comum pelas partes e de intervenção do Ministério Público do Trabalho, por certo não há como admitir a sobrevivência de uma competência descolada do novo contexto criado pela Emenda Constitucional n. 45, numa interpretação em frontal confronto com a realidade pretendida pelo reformador constitucional.

 

Assim, a melhor interpretação da norma constitucional é a de que, ao mencionar apenas os dissídios coletivos de natureza econômica, pretendeu-se a extinção dos de natureza jurídica, reconhecendo-se sua incongruência com a nova sistemática adotada pela reforma constitucional.

 

 

A título de considerações finais, parece oportuno que se atente para o novo cenário criado pelas profundas modificações introduzidas pela EC 45 no sistema de relações coletivas. Passa a preponderar o livre jogo negocial em detrimento da tradicional regulação mediada pelo Estado. Nesse contexto, de evidente maior insegurança para as partes envolvidas, a autotutela dos trabalhadores, através do exercício do direito de greve passa a ter muito maior relevância e, por vezes, será o instrumento quase único para alcançar suas reivindicações e, não raro, até mesmo para abrir um processo de negociação.

 

Assim, a greve, mais do que nunca, deve ser encarada pelo Poder Judiciário como instrumento imprescindível da negociação coletiva e direito constitucionalmente assegurado aos trabalhadores. Se, a pretexto de resolver o conflito coletivo, muitas vezes tolerou-se, no passado,  que o Judiciário interviesse abruptamente, pondo fim a movimentos grevistas, hoje, tal intervenção será totalmente descabida, ante a clara intenção do legislador constitucional de desautorizar a atuação do Estado nos conflitos coletivos, exceto pela vontade expressa e conjunta dos atores sociais envolvidos ou na hipótese excepcional  prevista na própria norma constitucional, em que possa haver lesão ao interesse público.



[1] A esse respeito, dos autores, “A Ação dos Piquetes e Comissões de Divulgação da Greve”, in Aspectos dos Direitos Sociais na Nova Constituição”, São Paulo: LTr, 1989, p 129.

[2]  Neste sentido, João Oreste Dalazen  “A Reforma do Judiciário e os novos rumos da competência material da Justiça do Trabalho no Brasil” em “Nova competência da Justiça do Trabalho”, COUTINHO, Grijalbo Fernandes e FAVA, Marcos Neves (coord.), p. 166.

[3] Trata-se da PEC 369/05, proposta do Governo Federal que, conjuntamente com um alentado Projeto de Lei, pretende alterar profundamente as relações coletivas e sindicais.

[4] Tal ponto pode tornar-se bastante relevante, caso vingue a proposta de Reforma Sindical, em que o Ministério do Trabalho passa a ser responsável pela aferição de representatividade dos sindicatos. Neste caso, deixará o Ministro do Trabalho de ter uma posição “neutral” no processo de discussão da legitimidade sindical, podendo ser tornar comum o ajuizamento de mandados de segurança contra suas decisões.

 

[5] O STJ, em expressiva maioria, já vinha decidindo neste rumo, após a Lei 8.984/95, art 1º. Em sentido contrário a súmula 33 do TRT RS e a já superada Orientação Jurisprudencial 290 do TST.

[6] A declaração de abusividade de greve somente faz sentido como decisão incidental seja em ação ordinária, seja em processo de dissídio coletivo. Ela, por si só, não tem efeito algum e “Seria apenas uma proclamação, um exorcismo, um anátema, um brado solto no ar, um flatus voci. Jamais um julgamento. Jamais uma sentença”, no dizer de José Fernando Ehlers de Moura, em “”Declaração de Ilegalidade de Greve em Dissídio Coletivo”, Revista do TRT RS, Porto Alegre: n. 19, p 13-15, 1.986.

[7] Respectivamente, artigos 7o, parágrafo único, e 6, parágrafo 2o da Lei 7.783/89.

[8] Em contra da competência para ações cíveis e penais,  Manoel Antonio Teixeira Filho, “A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional n. 45/2004”, Revista LTr, janeiro/2005, p. 17. Contra a competência em matéria criminal, Gustavo Filipe Garcia, em “Reforma do Poder Judiciário: o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45/2004, Revista LTr, janeiro/2005, p. 73.”

[9] A liminar foi proferida pelo Presidente do STF, Ministro Nelson Jobim, em 27 de janeiro de 2.005, sendo Relator o Ministro Cezar Peluso, em Adin, número 3.3395-6, ajuizada pela Ajufe, Associação dos Juízes Federais.

[10] Em sentido contrário, Gustavo Filipe Barbosa Garcia, ob. cit., p. 66.

[11] Convergindo com tal entendimento, José Antonio Pancotti, “A nova competência da Justiça do Trabalho”, Revista LTr, janeiro/2005, p. 85. Entendendo que não há restrições a que as partes ajuízem dissídio coletivo de greve, Gustavo Filipe Barbosa Garcia, ob. cit., p. 72.

[12] No sentido da aproximação do Poder normativo da arbitragem pública,  Marcos Neves Fava, “O esmorecimento do Poder Normativo – análise de um aspecto restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho”, em “Nova Competência da Justiça do Trabalho”,  ob. cit., p. 288: “A partir desta nova ordem, (...) a Justiça do Trabalho. ao decidir os conflitos coletivos, não poderá criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo ou nos acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes entre as mesmas partes”.  Em contrário, Gustavo Filipe Barbosa Garcia: “o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45/2004”: “O que ocorreu foi a inserção na jurisdição coletiva de um elemento encontrado na arbitragem”.  (ob.. cit., Revista LTR, 69, janeiro/2005,  p.69)

[13] Com esse argumento, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Educação e Cultura (CNTEEC) ingressou com ADIN junto ao Supremo Tribunal Federal, em março de 2.005, ADI 3392.  O Encontro dos Juízes do Trabalho em Alagoas, realizado dias 18.02.2005 e 07.03.2005 concluiu por esta inconstitucionalidade, item 4.5.

[14] A tal respeito ver Marcos Neves Fava, “O esmorecimento do Poder Normativo – análise de um aspecto restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho”, em “Nova Competência da Justiça do Trabalho”, ob. cit. p. 288.

[15] A norma constava do projeto de lei de relações coletivas que resultou do Fórum Nacional da Reforma Sindical .

[16] Ainda que o próprio conceito de “norma mais favorável” seja controvertido. A este respeito é interessante a leitura de Maurício Godinho Delgado a respeito dos critérios de hierarquia normativa juslaborista, em que disputam as teorias da acumulação e do englobamento. À luz da primeira, “acumulam-se preceitos favoráveis ao obreiro, cindindo-se diplomas normativos postos em equiparação”. Já na segunda “a percepção da norma mais favorável faz-se considerando seu sentido no universo a que se integra, de modo a não se criar antinomias normativas entre a solução conferida ao caso concreto e a linha básica e determinante do conjunto do sistema” DELGADO, Maurício Godinho. “Curso de Direito do Trabalho”, LTr, São Paulo, p. 1372

[17] Recorde-se a Instrução Normativa 4/93, agora já revogada.

[18] Como se sabe, tal instituto vigorou no Brasil por meio do art 1º, § 1º, da Lei 8.542 de 23 de dezembro de 1.992, sendo Presidente da República Itamar Franco. Tal Lei estabeleceu a política nacional de salários, entre outras matérias tais como depósito recursal na Justiça do Trabalho, art 8º. Foi revogada expressamente pela Lei 10.192 de 14 de fevereiro de 2.001, art  18, já sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso. A proposição da ANAMATRA,divulgada em seu Informativo número 64, de 11 de março de 2.005, item 10 das propostas para a Reforma Sindical, é no sentido de que a ultraatividade do instrumento normativo seria “mecanismo de garantia de efetiva equivalência entre as partes”.

[19] O já referido Encontro dos Juízes do Trabalho em Alagoas concluiu que “a Constituição, com a redação dada pela EC 45-04, prevê a ultraatividade das condições de trabalho quando não ocorrer acordo ou convenção coletiva na data-base da categoria, aplicando-se o princípio da norma mais benéfica (Art. 114, § 2º) (item 4.7)”.

[20] Evaristo de Moraes Filho tratando do contrato coletivo, lembra Carnelutti para dizer que o mesmo tem “corpo de contrato” e “alma de lei”, in “Relações Coletivas de Trabalho – estudos em homenagem ao Ministro Arnaldo Sussekind”, São Paulo: LTr, 1.989, p 34.

[21] RUSSOMANO, Mozart Victor. “Comentários à CLT”, Forense, São Paulo, vol. II, 13a. edição, p. 930

[22] Coqueijo Costa, “Direito Judiciário do Trabalho”, Rio de Janeiro: Forense, 1.978, p 88, apresenta o entendimento de que o que distingue a sentença declaratória em dissídio individual da declaratória em dissídio coletivo de natureza coletiva é que a última “reveste-se de uma normatividade”. Sustenta ele,  citando Délio Maranhão que não se pretende criar norma mas atuar sobre uma já existente “com um sentido de normatividade”.

[23] José Acurcio Cavaleiro de Macedo saúda a extinção do dissídio coletivo de natureza jurídica, dizendo que “os tribunais do trabalho, quando decidiam conflitos de natureza jurídica, atuavam como árbitros, porém com a força jurisdicional de verdadeiros e próprios órgãos de Estado. Neste sentido, elaboravam-se as regras jurídicas no caso concreto, casuisticamente, ocasionando toda uma construção de direito paralelo e assistemático que era manipulada segundo os interesses de ocasião e, desse modo, desestruturavam o edifício material do direito coletivo e suprimiam o cunho cientificamente jurisdicional das sentenças trabalhistas” (José Acurcio Cavaleiro de Macedo, em “A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a juridiciarização da Justiça do Trabalho”, Revista LTr, janeiro/2005, p. 107). Em contra, Gustavo Filipe Barbosa Garcia, ob. cit. p. 67.

[24] A este respeito, a Orientação Jurisprudencial número 6 da SDC do TST, revogada apenas em 10 de agosto de 2.000.

[25] Neste sentido José Felipe Ledur, “A Abusividade da Greve. Impossibilidade de sua declaração pelos Tribunais”, in “Perspectivas do Direito do Trabalho”, coordenador Beinsz Smukler, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1.993, ps 29/39. Ali estão referidos dois Acórdãos do TRT RS, cada um em um sentido. Igualmente pela impossibilidade de tal declaração, a manifestação do Procurador do Trabalho André Spies em Seminário organizado pelo TRT RS em 10 e 11 de março de 2.005.

[26] Carlos Alberto Moreira Xavier em “Dissídio Coletivo de natureza jurídica”, Revista LTr, agosto/96, p. 1038.