Honorários Advocatícios na Justiça do Trabalho – superação de uma injustiça histórica

Maria Helena Mallmann

Luiz Alberto de Vargas

Vânia Cunha Mattos

Rejane Souza Pedra

Luís Carlos Pinto Gastal

(Desembargadores integrantes da 10ª Turma do TRT 4ª. Região)

  

Como se disse em outro momento[1], cada vez tem-se entendido como primeiro dever das instituições sociais garantir a todos cidadãos a fruição de um conjunto amplo de direitos assegurados na Constituição, nas leis nacionais   e nos tratados internacionais. Em conceito cada vez mais aceito, o progresso de um país deve ser medido, não pela riqueza que acumula, mas pela apropriação do conjunto dos direitos humanos por parte da maioria da população.[2]

Embora não se possa reduzir toda a efetividade dos direitos fundamentais – e dos direitos sociais em particular - à sua judiciabilidade[3], não resta dúvida de que incumbe ao Estado, através do Poder Judiciário, tutelar os interesses protegidos contidos nas normas legais, assegurando sua efetiva realização.

Em tal contexto, cresce de importância as chamadas “garantias”, ou seja, os meios processuais (judiciais, administrativos ou mesmo materiais) adequados para a defesa dos direitos.[4] O amplo acesso ao Judiciário representa uma das principais garantias, sem a qual tornam-se inefectivos os direitos previstos no ordenamento jurídico. Conforme CAPELETTI, “o acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica”.[5]

 Por sua vez, BOAVENTURA SOUZA SANTOS aponta, entre os principais obstáculos do acesso à Justiça,  a insuficiência da assistência judiciária, que não deveria se  limitar  ao patrocínio gratuito e à dispensa das despesas processuais, mas abarcar “toda a assistência jurídica pré-processual, a começar pela informação, com a correlata tomada de consciência, passando pela orientação jurídica (complementada, quando necessário, por outros tipos de orientação), pelo encaminhamento aos órgãos competentes e culminando finalmente, na assistência judiciária propriamente dita”.[6] De fundamental importância, em decorrência, o papel do advogado, imprescindível à Justiça como prevê o art.  113 da Constituição.  No processo do trabalho, tendo em conta suas características de especialização, a existência de um profissional qualificado e motivado para patrocinar a causa é fator decisivo para viabilizar ao trabalhador real acesso à Justiça.

 

A promessa constitucional não-cumprida de assistência judiciária integral

 

A Constituição consagra o direito à assistência jurídica integral (art. 6o, LXXIV), que, certamente, inclui o direito de todo cidadão carente demandar sem que tenha de suportar os custos de seu advogado.

  Dois pontos, aqui, merecem ser destacados: primeiro, a norma do art. 5º constitui-se uma garantia constitucional prevista no capítulo dos direitos individuais, verdadeiro “direito subjetivo público”, que se fundamenta nos princípios da solidariedade social e da isonomia, ambos agasalhados pela Carta Magna. Segundo, o texto constitucional destaca a assistência jurídica integral, claramente situando-se em um conceito mais moderno que, como já se fez referência, não se limita ao simples apoio judiciário.

Apesar de tão clara disposição constitucional, justamente o jurisdicionado trabalhista - provavelmente o mais carente entre todos -, não goza de suficiente assistência judiciária, o que representa uma anomalia grave do sistema que insiste em se prolongar no tempo.

Ainda em vigor, a Lei Federal n. 1060 de 05/02/50 assegura assistência judiciária ao necessitado, assim considerado “aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família” (art. 2o).

Entretanto, ainda que se tenha apontado a incompatibilidade da Lei n. 5584/70 com o texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência entenderam majoritariamente pela sua aplicabilidade estrita ao processo do trabalho, inclusive afastando uma interpretação extensiva das disposições da Lei n 1060/50. Assim, limita-se o benefício da assistência judiciária gratuita aos jurisdicionados assistidos por sindicato profissional e, assim, apresentam credencial sindical. Além disso, pela letra fria da lei, a assistência judiciária se restringe aos que ganham até dois salários mínimos.

A lei sequer menciona a expressão “honorários advocatícios”, mas fala em “honorários assistenciais”.   Não se trata, em verdade, de uma assistência jurídica, mas uma verdadeira assistência política. É de se lembrar que, por herança do modelo corporativo, a legislação atribuía ao sindicato um caráter de colaboração com o poder público, o que sintonizava com o espírito conciliador com que se originou a Justiça do Trabalho.

Além disso, a lei assegura tal assistência apenas ao trabalhador inquestionavelmente pobre.[7] A gratuidade limita-se, na lei, a trabalhadores que não ganham mais do que dois salários mínimos ou que demonstrem a impossibilidade de demandar sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. Curiosamente, não se fala no “ganho atual” do demandante, ou seja, nas condições econômicas presentes ao tempo da demanda. Sabendo-se que a esmagadora maioria de trabalhadores demanda exatamente quando fica desempregado, certamente não se poderia falar no nível salarial do demandante antes da demissão. Portanto, quando se fala em “trabalhador que perceba até dois salários mínimos”, o que se pretende é identificar um “certo tipo de trabalhador”, de ganhos baixos, em uma clara indicação que se trata de uma justiça que se propõe a albergar demandas de trabalhadores de baixa remuneração, sendo os demais vistos como verdadeiros intrusos.

A doutrina e a jurisprudência, mesmo após a Constituição de 1988, seguiram na mesma direção – a de reservar a assistência judiciária apenas a uma pequena parcela dos que dela necessitavam e, ainda assim, limitando tal assistência a que puder ser oferecida pelos sindicatos. A Súmula 329 do TST continua em vigor: “Mesmo após a promulgação da Constituição da República de 1988, permanece válido o entendimento consubstanciado no Enunciado 219 do TST”.[8]

 

Justiça do trabalho: das causas pequenas à Justiça de massas

 

A Justiça do Trabalho e as relações laborais no Brasil do século XXI não são as mesmas de cinquenta anos atrás, o que, por si só, recomendaria o reexame do tema honorários advocatícios na Justiça Trabalhista.

Desde sua criação, a Justiça do Trabalho constantemente evolui, julgando por ano quase quatro milhões de processos e um orçamento anual de cerca de doze bilhões de reais.[9] Ao longo desses anos, assistimos muitas mudanças, como a extinção dos juízes classistas, a ampliação considerável de competência material, a extensão da jurisdição a todos os pontos do território nacional (praticamente extinguindo a competência residual das Justiças Estaduais), a criação de um Tribunal do Trabalho em cada estado da Federação, o aumento vertiginoso das demandas e a implantação do processo eletrônico.

Sem dúvida, estamos longe dos primórdios, de uma Justiça eminentemente conciliatória, para processos de grande simplicidade, com poucas questões de direito a serem enfrentadas, com matérias de fato a serem dirimidas quase sempre através de prova oral. Em uma jurisdição limitada e de pequenos conflitos, parecia fazer pouco sentido a presença de advogados e, por isso, adotou-se o “jus postulandi”, ou seja, admitiu-se que as partes demandassem sem o patrocínio de advogados, tidos como desnecessários – em certa medida até mesmo “inconvenientes”.

Em realidade, a ideia central era de uma justiça em que os conflitos fossem resolvidos preferencialmente por transação em um contexto de harmonia entre o capital e o trabalho. Em tal contexto, os profissionais do direito eram, muitas vezes, vistos como intransigentes, belicosos e formalistas.

Provavelmente por isso, desde o início, tradicionalmente sempre se prestou pouca atenção à assistência judiciária. Embora se assegurasse a gratuidade, típica de justiça de pequenas causas, a assistência do trabalhador em juízo foi confiada ao sindicato (não ao advogado), em uma obsolescência que persiste através da Lei n. 5.5.84/70. No modelo idealizado de um procedimento simples, informal e eminentemente conciliatório, competiria ás partes trazer seus “depoimentos orais” e ao juiz “dizer o direito”, sem a intermediação de advogados e, por isso, claramente não se estimulava (ao contrário, se restringia) que estes participassem do processo trabalhista.

 

Justiça do trabalho – uma justiça sem advogados?

 

A Justiça do Trabalho é a única que ainda não assegura  o pagamento de honorários assistenciais a todos os carentes os que nela demandam, obrigando, na maior parte dos casos, o trabalhador a pagar de seu bolso os honorários do seu advogado. Na maior parte dos casos, isso é feito sob a forma de uma autorização ao advogado para descontar os honorários dos ganhos que tiver no processo.

Por razões históricas que, hoje, em absoluto se justificam, no Judiciário Trabalhista, na maior parte dos processos, não é reconhecido o direito aos chamados “honorários sucumbenciais”, o que importa em significativa dificuldade para que jurisdicionado trabalhista encontre advogado para patrocinar sua causa.

Não há qualquer justificativa para que, em processos trabalhistas, os vencedores não tenham direito a que os custos com advogado sejam atribuídos à parte vencida, enquanto que, em outros ramos do Judiciário, esse direito é pacificamente reconhecido. Tanto assim que, a partir da migração para a Justiça do Trabalho dos processos em que se discutem indenizações por dano moral e acidente do trabalho, Passou-se a conceder, na Justiça do Trabalho, honorários sucumbenciais em “processos que não versem em relação de emprego”, criando-se um paradoxo dificilmente justificável do ponto de vista da equidade.[10]

O processo trabalhista, hoje, é cada vez mais exigente e complexo, não sendo possível demandar sem o concurso de um advogado. Mesmo nos poucos locais onde ainda subsiste o “jus postulandi”[11] este se resume à fase inicial do processo e, mesmo assim, porque a inicial é feita por funcionários da própria justiça que funcionam como se advogados fossem (a quase-folclórica “termação”, onde na prática, funcionários públicos são involuntariamente utilizados para “adiantar” o trabalho de confecção das iniciais para advogados que não querem ou não saber fazer seu trabalho).

O rigor processual, o fim da oralidade, a exigência de manifestação por escrito, a não-aceitação de recursos orais, tudo está em completa desarmonia com a suposta simplicidade do processo trabalhista e a prescindibilidade do advogado.

A implementação irreversível do processo eletrônico na Justiça do Trabalho sepulta definitivamente qualquer possibilidade de sobrevivência do “jus postulandi”, o que, por si só já exigiria uma revisão dos critérios de concessão da assistência judiciária, bem como da própria persistência da arraigada tradição de se recusar o deferimento de honorários de sucumbência no processo do trabalho.

Mesmo em face de tudo que foi dito, teima-se em fechar os olhos à realidade e prossegue-se agindo como se o “jus postulandi” ainda existisse[12], como se fosse possível ao jurisdicionado demandar sem advogado.

 

O direito do trabalhador reconhecido por outro ramo da Justiça

 

Ante a insuficiência do Judiciário Trabalhista em assegurar aos seus jurisdicionados o direito de amplo acesso, outro caminho foi encontrado pelo trabalhador, que foi buscar em outro processo o ressarcimento das despesas com os honorários de seu advogado. Assim, processos postulando a restituição por perdas e danos passaram a ser uma saída para o impasse de uma Justiça que precisa de advogados, mas se recusa a estabelecer uma forma adequada de remunerar o trabalho destes profissionais. Tais processos se apoiam em entendimento firme do STJ de que, pelo princípio da reparação integral e pelas regras dos artigos 389,395 e 404 do Código Civil, os honorários advocatícios integram os valores devidos a título de reparação por perdas e danos. Assim, como os honorários convencionais são retirados do patrimônio da parte lesada – para que haja reparação integral do dano sofrido – aquele que deu causa ao processo deve restituir os valores despendidos com os honorários contratuais”.[13]

Sem dúvida, trata-se de correção mais que bem-vinda, ainda que se possa questionar a competência da Justiça comum para tais demandas que, salvo melhor juízo, competiriam à Justiça do Trabalho.

De fato, o novo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406/02) veio a positivar no sistema jurídico pátrio a ideia da reparação integral dos prejuízos advindos tanto da inexecução do contrato como da responsabilidade civil extracontratual (art. 944). O CCB/02 trata de regramento geral, aplicado como tal a todas às relações jurídicas de Direito Privado, incluindo o contrato de emprego (art. 8o da CLT). Em especial, indicam os artigos 389 e 404 do CCB que a restituição do prejuízo pela inexecução contratual será paga com atualização monetária, abrangendo juros, custas, pena convencional e honorários de advogado. Ou seja, a condenação em honorários advocatícios não decorre do princípio processual de sucumbência, mas do princípio de direito material da restituição integral do prejuízo.

Mais claro ainda o que prevê o art. 87 do a projeto de lei do novo Código Civil, em vias de aprovação na Câmara dos Deputados, que determina que a sentença condene o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor (PL n.8046/2010).

Conclui-se, assim, com base no disposto nas referidas normas, que a restituição integral dos prejuízos advindos ao trabalhador demandante pela inexecução parcial do contrato de emprego apenas pode ocorrer com a indenização, também, dos valores despendidos por conta dos honorários a seu procurador.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] VARGAS, Luiz Alberto. FRAGA, Ricardo Carvalho. “O papel da assistência judiciária na efetivação dos direitos fundamentais”. Revista da Ajuris, , vol. 30, n. 92, Porto Alegre, Ajuris, dezembro/2003.

[2] Como  é exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

[3] COMPARATO, Fábio Konder. “O papel do juiz na efetivação dos Direitos Humanos”. in "AJD  ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA. Direitos Humanos - visões comporâneas". AJD, 2001, São Paulo, p. 25.

[4] ALBUQUERQUE ROCHA, José. “Estudos sobre o Poder Judiciário”, Malheiros Editores, São Paulo, p. 60.

[5] CAPPELLETTI, M. e Garth, B. “Acesso à Justiça”. Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, p.13.

[6] SOUZA SANTOS, Boaventura. “O Acesso à Justiça” ”  in Associação dos Magistrados Brasileiros, “Justiça: promessas e realidade, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996, p.406

[7] Ou miserável, como parte da doutrina costumava destacar, acrescendo “miserável  jurídico” – talvez para diferenciar da acepção literária como na imortal obra de Vitor Hugo!

[8] Enunciado 219: 12.93). Enunciado n. 219, do TST: Na Justiça do Trabalho, a condenação em honorários advocatícios, nunca superiores a 15%, não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindi- cato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferi- or ao dobro do mínimo legal, ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família.

[9] Dados do Relatório Justiça em números, CNJ, 2012.

[10]  O art. 5º da Instrução Normativa 27/05 do TST que dispõe sobre as normas procedimentais aplicáveis ao processo do trabalho em virtude da ampliação da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional 45/04, estabelece que, exceto nas lides decorrentes da relação de emprego, os honorários advocatícios são devidos pela mera sucumbência.

[11] Art. 791 da CLT.

[12] Para Jorge Souto Maior, inclusive, o artigo 791 da CLT já estaria formalmente revogado em face da edição da Lei n. 10.537, de 27 de agosto de 2002. A esse respeito, SOUTO MAIOR, Jorge. “Honorários Advocatícios no processo do Trabalho: uma reviravolta imposta também pelo novo Código C ivil”.  Rev. TST, Brasília, vol. 69, nº 1, jan/jun 2003.

[13]   “Os honorários convencionais integram o valor devido a título de perdas e danos, nos termos dos arts. 389, 395 e 404 do CC/02. O pagamento dos honorários extrajudiciais como parcela integrante das perdas e danos também é devido pelo inadimplemento de obrigações trabalhistas, diante da incidência dos princípios do acesso à justiça e da restituição integral dos danos e dos arts. 389, 395 e 404 do CC/02, que podem ser aplicados subsidiariamente no âmbito dos contratos trabalhistas, nos termos do art. 8º, parágrafo único, da CLT. (Superior Tribunal de Justiça, Terceira Turma, Recurso Especial nº 1.027.797-MG, relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi, julgado em 17 de fevereiro de 2011)